EX-VOTOS


Eu deixaria de contar lorotas,

se o meu Tio Batista batesse as botas.

E mandaria benção a todas as devotas,

se o Tio Batista batesse as botas…


Se o Tio Batista batesse as botas,

só sagradas anedotas:

notas certas, sábias rotas.

Adeus aos ignotas idiotas.


E tudo que o Tio me pede é filho,

não bata as portas,

de porta aberta coma xoxotas.

. . .


PAISAGEM


Pupila, íris — eu as descansava,

fechadas ao quase afago dum ônibus que chacoalha,

eu pensava

nos capibaribes…

A minha pupila — a íris —

formava uma imagem terna desses capiberibes que não cheguei a conhecer…

Um dia,

quem sabe

– quem saberá o sonho mentado

pelas pupilaíres das mais Laires sentadas?...

Ao meu lado, uma Lair sentada

pensará num Capibaribe?...


Não se chamará Lair… Terá seu próprio nome…

Seu rio será o Nosso nome.


Vamos pensando, vamos...

Vamos fechando os olhos

— pupila e íris…


As duas:

sombras de capibaribes

mas pousadas nas mais-que-laíres

também fechadas

que despertam com uma certa raiva...

. . .

CONFISSÃO (2022)


Eu vou falar a verdade. A vida, que me deixem cá com a minha — não preciso traduzi-la, vai indo bem, obrigado. A confissão é de outra ordem. Eu falo aos meus colegas; e se falo aqui aos meus leitores peço que me leiam esses colegas, um tipo específico de poeta que se revolta e diz que isso que faço não é poema não é bem assim e assim é a vida, assim ele vive a vida e lá aos outros apenas a exibe disruptiva impressa na página, contra as belas artes e também contra a própria poesia, diz que faz outra coisa, sei lá não sei, alquimia. Sabem lá não sabem, esses daí, que quando se joga um jogo não se furta às regras quem rouba ou vira tabuleiro. Um War supõe a trapaça, a dissimulação dum irmão mais velho, para operar; um War pressupõe a histeria, o descontrole do mais novo, para se consumar. A war se impõe como lógica desde que admitida a entrada de sua caixa na sala de se estar. Tal qual para o eu dizer qualquer coisa no seu idioleto eu-de-lira há que já estar admitida a lira. Eu disse pro Picchetti no ônibus lotado: não se trata de exceção, o estado é de exceção. Ele disse que ah Miguelzinho então anda lendo Agamben. Não, seu animal, estou lendo o mundo. E aqui o tecendo por uma forma de escrita. Aproveito para contar uma história que pouco tem que me ver comigo, com que não me identifico, e que não me reflete. E vou pô-la em meio a branco de página para que de-lirem:


Doze toneladas de chuchu

numa caminhonete de quinta

descendo a Serra de Estrela

a Ponte do Pontal

numa noite meio absurda

As doze toneladas divididas em múltiplas partes

contêineres a fora

Algumas estão na China


O todo

O pau duro

Umas dívidas

Isso embriaga o motorista


O motorista para

dá um tiro pro nada

Compensar as aporias


Nada coisa nenhuma

Tinha eu aqui, viu

Me acertou


Desculpa, moça, não vi


E morreu

. . .

RUGIDO DAS FERAS


1.
Pensem na dança dos faróis, peço que pensem na dança sutíl dos sinais de trânsito. Porque nesse instante os faróis do mundo todo, os que não estão quebrados, os faróis funcionais do mundo todo, se não vermelhos ou amarelos, são verdes, oscilando, uns e outros, para os seus contrários; e, porque, num próximo instante, os sinais funcionais do mundo todo se alternarão, caso já não tiverem-se alternado, para uma das três cores. Pensem que, pelo eclipse visto, o padrão iluminado, uma música silente, os faróis funcionais do mundo todo estão a nos codificar: só a cultura contra a natureza dançaria assim aleijada de concerto.


2.
Agora vou-lhes mostrar algo que vocês conhecem do jeito que conhecem: pombo. Ave é meio dinossauro, meio réptil. Cobra vocês já conhecem. Toma cuidado com cobra. Com pombo não toma cuidado: o pombo que toma cuidado com a gente. Perdeu as presas de cobra e ficou com um bico; as patas excelentes nadadoras do jacaré viraram patinhas de pombo duas e duas as asas; com jacaré toma cuidado. O pombo mutante foge assustado, senão pombo atropelado. Ai que tristeza, um caiu no lago, ai, pombinho devorado — dizem que pombo é meio rato.


3.
Daí os advirto. Um dia escrevi: uma harmonia guarda até o saber que a encerra. Guarda a busca pelo saber, seria de mim mais sensível ter escrito. Um harmônico sabe mais que ninguém que, se vai acabar, precisa acabar sem nem se ver. Como dividindo-se infinitamente por dois, dois, a capacidade dum reservatório que nunca chega a zero; que vai, na verdade, multiplicando-se vista em cada unidade cada vez menor; como isso, mas sem unidade — por enredamento contínuo, tão indiscreto quanto sentido sem alarde: uma frequência; acho que alguém harmônico se encerra como uma frequência...
. . .

SUCESSÃO


Tem raiva Chiquita?

que no séc. XXX não vai ter quem decifre?

hermetismo e filosofia?

escritos no nosso próprio cuneiforme?


Vc morre de raiva

Eu entoo minha cantilena


Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê

Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê


Ninguém me vai ler

Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê

Ninguém me lê


Chiquitita no apocalipse

é doce morrer de alegria

. . .

NIVELAMENTO


Certa noite não se puxará ar — para gastá-lo de novo.    

Um dia a música metida a deus — acaba como quem arfa o gozo:

no instante posterior à porta batida  às mãos postas sobre o rosto,

instante anterior ao eu te odeio — mas posterior à próstata    

    quando nos diz te amo — e cala o vazio de nenhum acorde.    


A briga eterna não saberia a eterna sobreposição;

nela entrescuto alguns momentos de silêncio,

e, nunca sob tensão, um silêncio

igual a todo silêncio

!

O AMOR VIVIDO PELA ATRIZ

É óbvio que para Maria Bethânia
26.1.2022

Naquela atriz a mão no ar

depara o gesto com o gesto

e depura o resto;

fica com a matéria

nosso registro único,

o falso.


Só no teatro

quem vê aquela atriz

distingue da falsidade seus tipos,

aceita:

depois daquilo tudo quer ser

se bem que não tão bem

traçado no palco.

. . .

PROJETO DE TEXTO


Construir um prédio assim-ó:

no primeiro andar, amores...

No segundo, só dores...

No terceiro, uma escada rolante que passasse pelo primeiro,

daí voltasse pelo segundo através duma sala toda espelhada,

de pé direito alto,

pé direito tão alto que poderia alcançar

um espaço integrado à Rua Marquês de Sapucá

por onde se fará entrar, caso queiram,

diretamente em nosso terceiro andar:

de conceito aberto,

encanação exposta

e piso industrial...

No quarto, ah que lindo,

um terraço: flores...

. . .

ilustração pelo Antonio Yudi

O


Mijaram ali um ano atrás.

Há dois dias mijaram

bem ali. No mesmo ponto

estão mijando agora.


As folhinhas continuam dispostas

uma trançando outra

em torno da extinta poça seca.

Sabem, sinto que guardam,

a memória do mijo

ou pelo menos sofrem

a memória do mijo.


Aquilo nem chega a ser

memória, se chegou

já foi e é só

agora

decorrência de tudo

murmurando claro:

estive aqui

vocês não sabem.

Essa é a pior das vinganças…


Aquilo não é esquecimento.

Está tudo dentro.

Nem se perdeu: não há mapa.

Não é cicatriz

se não conta da queda.

Aquilo é

na recorrência do nada que ia,

do nada que já é um dia


e sinto que segue

produzindo mijinho:

farfalho de folha

pra traçar o caminho.

. . .

JUSTIÇA SOCIAL


Aquela publicitária é uma poeta

aceito

aquela publicitária é uma poeta

Que fazer? é uma poeta

dizendo assim

um UBER-Flash leva

de casacos de ex a cartas de amor


A serviço do capital se fez poesia

Contra os críticos poesia

Contra mim poesia

Ela fez intransigentemente poesia

Não tinha esse direito

Não queríamos que o tivesse

Mas o arrancou com seus dentes esmaltados

com esmalte de sua faculdade de Propaganda e Marketing


Ela nasceu faz uns anos

Mais o menos os mesmos suponho

que aquele publicitário

que fez aquele vídeo

que tinha a boa cantora cantando

Chega de Saudade

e me tocou


Torço pro casamento dos dois

Então

eu os atropelarei em um Uber

e com o rádio tocando Chega de Saudade

triunfarei sobre a carne vendida deles

Eu caríssimo muito mais

sempre eterno justamente

poeta

. . .

MANUAL


O livre define-se em relação a-

O livro também mas isso se oculta

e entre os dois

pesa mais que dois milênios

de tradição e etimologia


O papel do livro quer seja livre

é o de primeiro a carbonizar

Tão logo mantêm uma vogal

franceses alternam na consoante

e dizem les livres sont pas libres

Nunca se confundem

No castelhano são qualquer coisa

entre o sistema nosso e o deles


Uma questão geográfica

também uma questão didática

por que se explique aos falantes

que ler não é fácil não lendo

não se viaja

e a escritura se impõe

sim contra os outros sentidos

Não nem vem

não

ler sangra

sim


Ler é mais que liberdade

Ninguém transcende por literatortura

. . .

DEDICATÓRIA (feita a 20 de outubro por sensação de urgência)


Novo Acordo Ortográfico, eu o dedico aos outros. Glorificação, para ninguém. Sei lá, para os americanos. Eu já dedicara para Clara Uma imagonia, e assim é. Decisão sobre os Anolis envio ao meu professor Fabio de Souza Andrade, sem que ele o saiba: por reconhecimento. Isso eu repito com eu mundoGuia, pra quem criou a Netflix, deve ser Mark Zukenberg. Gestuário é para mim, que também sou gente e também mereço. intervenção nem precisa repetir. Balanço nasceu para Marina e assim, igualmente, o é. Translação, não digo; meu Deus, quanta violência. Sobre Fósseis de Ciborgue, só pode: Gal Costa. Nuinha. Engenho: André Pagani. receita de guardanapo vá mesmo o "Filipinho", e, nem se me torturar, não revelo o nome. retratelepatético é óbvio demais para quem. Bossinha fica sendo para o Chico, porque o quis dedicar para ******** e Chico não deixou. horror de nem, prum rato? Quem sabe. O Espólio de Fulvia Guzzanti, para ela mesma — e nem existe, coitada. (Ao momento da revisão esse poema já não existe mais. Risada maligna. Todo texto tem mil camadas; no jardim de minha avó há doze flores). Ai que se começo algo sério vou trapaceando, não dá jeito. Há outra forma? (E vou percebendo que tantos destes poemas couberam à — justa medida da lata eletrônica de lixo). Termino logo: Clara desgostou de Ritmo da Partida, mas dedico esse outro a ela, se sou eu quem decido; igreja dedico ao Totô. Aí, sim, coitado: ficou com o pior. Era preciso de eu testamentar tudo antes que a estante sob a qual durmo desabe em mim. Acabo de perceber que não dediquei nada para minha mãe. Tirem então o do rato do rato, o deem para ela. É tudo sempre para ela. Fim.

. . .

NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO


Ela que eu não enrabava rabiscando na lousa

o português acentua até as três últimas sílabas

Ela coró zíssima e eu pensava

você me enraba?

porque veja eu não sou veado nem deixo de selo

mas quem vepensa


Vepensando assim eu assumia por necessidade

que só mentexistem ós abertos em sílabas tônicas

que os verbos atraem pra si toda sorte de quase palavra

que se absoluta

mentefez preciso repensar umas distâncias


Eles atraindo tudo assim

como quem vepensa

atraem a visão a mente

os sentidos eles atraindo

eles nos atraindo

os princípios dos verbos

Pelo que eu também vepensava e queria

velo assim sendo enamorada

. . .

GLORIFICAÇÃO (2021)


T. S. Eliot

nasceste em Missouri

morreste à Inglaterra

Tua carne nasceu fresca

e boa e morre velha

et cetera e etc


Goza. Viva o Shopping West

Plasma o arrasar desta era

Glosa. Pronuncies prenúncios

com teu sotaque americano

diz burning burning

burning incrédulo

crente bem como vos descrevestes

nos compêndios da academia

Certos de que o mundo convosco começa

e convosco se encerra         

                                     Não

as últimas cigarras do cerrado

terminarão de queimar depois

de cantar muito depois

que estiverdes sob a terra

. . .

UMA IMAGONIA


ela, por si só, ela

suscita, que ela

complica, quando escrevo e

sentado sobre essa sensação

de escrevê-la

(um instante fura a ima

(mais que estar fora-dentro

ficar dentro-dentro,

dois corpos no mesmo espaço

traindo o espiritual e o físico

                             o imã

ele, por si só, ele

aproxima, que ele

destina, quando sinto e

criado nessa inscrição

de sentí-lo

) imagina só: imagina)

penetrar não era força de expressão

— era magnético; a página

— magnética; o mundo

representaria magnetizado

mais que um instante de impressão

e isso, enquanto se anunciava,

                               gonia


. . .

DECISÃO SOBRE OS ANOLIS


Chovia na Martinica

— chovia no poema

e isso não era expressão de qualquer estado do poeta.

Chovia; e tanto.

Era impossível da crítica negar a chuva.

Mas charcos tomaram a Martinica,

e isso desdenhou sobretudo o poeta.


            O curioso do poema 

            foi que a camaleoa, a contemplar o dilúvio

            intuindo seu iminente fim caribenho,

            não guardava qualquer relação

            com a crítica, com o lagarto

            ou com a leoa

            (e nem por isso deixa de ser bonito imaginar uma

            assim, deitada).

. . .

eu mundo


Edmundo foi diagnosticado                                  entre eu e o mundo:

ausência de choque                                               Confusão das categorias-mundo

entre ele e o mundo:                                             indiferença da cisão-mundo,

O poema, diagnosticado                                       dumenou poeminha, dominou

ausência de choque                                               e saiu pela porta do fundo

. . .

O DETORNO*

* prosa de circustância para Daniela Leite a Conselheira Amorosa


Ai, dor... quero a cenografia do acaso sobre a tragédia escrita; a chave insolúvel-dissolúvel para o diletantismo; a comédia homérica perdida (não a Penélope de urdidura a ódio-de-si em vigília por Odisseu); perder esquecer esquecer esquecer e dar — como eu dava — pra todos pretendentes: ai, prazer... sempre difícil distinguir.

. . .

O SONO DA RAZÃO


Nesse verso oculto

prescrevi a Rede Globo

pra quem sabe um dia

conceber nomes

que soam remédios

como a comunhão

de novelas globais

. . .

GESTUÁRIO


1.

Subiram com balões.

Surgiram com drones de alcance

mais alto, ao maior mar,

menos com a não mais precisa

mas necessária

máquina de aprofundar ao como se dá

o descanso dos siris:


se, na morada em que se escondem,

trocam afetos,

se é fria (aproximam), se é escura

— se sentiríamos ali a mesma

melancolia devida ao mar

que sentimos por cima da areia,

obrigados a escutá-lo

sem afinação.


Nunca um siri retorna pelo mesmo buraco em que entrou fugindo de nós

ela diz,

e nem vemos se por outro qualquer.


Acha que a areia é a quitina

triturada pelos pés;

e não sossega na canga

diante de uma demolição

como essa.


Não adiantam retroescavadeiras.

Arrancado todo o conteúdo da orla

os pegaríamos de surpresa,

desmantelaríamos a forma,

para ficar com uns dois

três inválidos sem escapar:

sem reter seu segredo.


Então com a voz marejada

ressurgem, eu sinto, já por debaixo d'água

e eu lamento

pelo egoísmo

pela teimosia pela inconsciência

e detesto o som permanente.


2.

*
Aqui, a matéria é quente e não a suportam aspirações germânicas, em dimensões miúdas, do castelo feito por quem o sorveteiro ignora, porque, oferecendo o frio, o sorveteiro busca e explora as expectativas de dois, juntos, nutridas ao um pelo outro. Sem isso, sente motor de mover a caixa para outro oriente. A solidão de um só torna o modelar na praia oco; as paredes, ocas; as cócegas sentidas na mão, provocadoras dum riso tímido e, sem mais outro, não, que é, para o sorveteiro, uma resoluta deserção.
*
"O primado da contemplação sobre a atividade baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas igualar-se em beleza e verdade o cosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina."
*
"Há um óleo suave que eles passam nas costas, e esquecem."


3.

Sentir uma bolacha do mar com a ponta do pé,

perdê-la. Sentir outra no mar com a ponta do pé,

capturá-la. Examiná-la.

O seu peso na mão perguntar, pela gente,

pelo que fazer

(...)

o arremesso é exagerado;

a mira,

distante; e a despedida,

assim como toda despedida,

insuficiente.

. .

ilustração pelo Antonio Yudi