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GÊNERO: CARTA DE SUICÍDIO

 

O conceito de "capital cultural" nos obriga a considerar algumas consequências do termo polissêmico "riqueza". Riqueza de quê? Pois bem, vamos agora a apenas uma dessas consequências.

Muito já se disse sobre o princípio aristocrático do deboche aos "novos ricos". E sabe-se bem que o problema do Brasil não é nem jamais será a classe dos novos ricos, dos que passaram a sê-los, mas a classe dos velhos pobres, dos que nunca deixam de sê-los:

"Abro a porta, vejo a fumaça no asfalto
O Sol me cega, eu sigo em frente
Encaro o Sol, deixo meu rastro para trás
O dia corre assim veloz
O dia corre além de nós
E eu vou me desviando das aeronaves
Que aterrissam a todo instante
Morrer já não parece novo, já não assusta
Desço a Rua Augusta a 120 por hora
(...) O Sol nas bancas de revista
E na capa da revista
Sombra, grana e água fresca
Vejo novos ricos
Vejo velhos pobres
(...) As meninas dos Jardins gostam de rap"

No entanto talvez ainda não se tenha dito tanto sobre o princípio aristocrático, em outro sentido todavia análogo, de um possível desprezo aos "novos ricos" na extensão cultural que se dá à ideia de capital: "os novos cultos". Uma questão que já se enfrentava na década de 1940 na Europa Ocidental, escreve Adorno no Fragmento 32, "Os selvagens não são homens melhores", de sua Minima Moralia:

"Entre os estudantes negros de economia política, os siameses em Oxford e, em geral, entre os laboriosos historiadores da arte e os musicólogos de origem pequeno-burguesa, pode encontrar-se a inclinação e a prontidão para associar à apropriação do que estudam, do novo, um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, pelo reconhecido. A disposição anímica intransigente é o contrário do estado selvagem, do espírito de neófito ou dos 'espaços não capitalistas'. Pressupõe experiência, memória histórica, nervosismo de pensamento e, acima de tudo, uma substancial dose de tédio. Sempre foi possível observar como aqueles que, com sangue jovem e total candura, se integravam em grupos radicais desertavam, logo que se apercebiam da força da tradição. Há que ter esta dentro de si para a poder odiar. O facto de os esnobes mostrarem um maior sentido pelos movimentos vanguardistas na arte do que os proletários lança também alguma luz sobre a política. Os epígonos e os recém-chegados têm uma angustiante afinidade pelo positivismo, desde os admiradores de Carnap na índia até aos corajosos apologistas dos mestres alemães Matthias Griinewald ou Heinrich Schiitz. Má psicologia seria a que admitisse que aquilo de que se está excluído desperta apenas ódio e ressentimento; suscita também um absorvente e impaciente tipo de amor, e aqueles que não foram arrebanhados pela cultura repressiva facilmente se tornam a sua mais néscia tropa defensiva."

Depois de uma leitura tão indigesta, é a hora de nós nos perguntarmos, em nossos corações, se também nós aceitamos apenas o ódio dos subalternos, que nos devolve a imagem de nossa própria relação com o que foi nos desagradavelmente legado; se, então, não estamos dispostos a aceitar também o amor dos subalternos, um amor de que sentimos não precisar, pois nunca se ama tudo aquilo que não precisamos jamais amar para ter.

O que se chama de capital cultural.

Se nos indagássemos no fundo de nossos corações, descobriríamos que mesmo o nosso ódio à tradição é estéril e não serve de nada. É a mais forte exclusão, é a mais perversa promessa: estabelece-se que, a partir de agora, dele só poderão participar aqueles que sequer possam a vir conhecer o que chamamos "nossa tradição" (como se por direito, mas por privilégio e, sobretudo, absoluta ignorância); pois os que, conhecendo-a, não travarem com ela a mesma relação que travamos nós — aqueles que nunca precisamos conhecê-la, uma vez que dela cremos que surgimos —, esses talvez não irão detestá-la da maneira que a alguns parece adequada, recomendada, correta:

"Os acertos dos privilegiados devem valer menos que as tentativas equivocadas dos despossuídos. Pois o privilégio paga inclusive por isso: acertos."

Não, enquanto classe, a única boa contribuição que seremos capazes de dar ao mundo é a traição ou o suicídio. Não nos termos do que achamos que deve ser uma traição ou um suicídio. Nos termos dos outros, nos termos da exigência de traição ou de suicídio que nos for feita.

O que pode envolver levar de volta todas as chicotadas já dadas:

"Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não
(...) Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão
Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação"

— Nesse caso, estaremos dispostos?

Mas, e o pior, se não só nos for preciso pagar e sofrer, isto é, afetar-se na economia do ódio, se também nos for pedido o que nunca poderíamos ter previsto: amar, nos moldes de um amor "neófito" que, pelo gesto de uma pura distinção, detestamos — também a isso estaremos dispostos?

Abrir mão do nosso "gosto", de um gosto tal que pode se dar ao luxo inclusive do desdém, desprezo ou descaso aos próprios objetos que lhe são inerentes, não: isso seria muito perigoso.

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MUITO OBRIGADO

 

No banheiro de um café colombiano tocado por um casal gay na zona rural do município de Guararema, no interior do estado de São Paulo, vejo um quadro em cima do vaso. Trata-se de uma impressão barata, em lona, de letreiros esteriotipicamente estilizados: “Café”, “Hotel”, Diner”; até Moulin Rouge. Começo a pensar que estou ficando louco. Percebo que é quase sempre assim: símbolos me dão pânico. A sensação de ter que sustentar a sua convencionalização — uma vez que, relativizados, passo a estranhá-los e ganhar consciência de sua arbitrariedade — leva à minha própria percepção enquanto alguém também profundamente arbitrário, que sustenta símbolos e convenções só para si. Um esquizofrênico, ainda mais diante de símbolos do capitalismo.

Mas a minha loucura nada mais é que a minha forma de pensar individualmente o que se chama, coletivamente, de “crise existencial” – algo que acometeria a “todos os homens” no ato de tomar consciência de sua dimensão “humana”. Ora, se penso no sol explodindo não penso que estamos danados, penso que não saberei mais sustentar o peso da reprodução social da vida se tenho consciência desse fato. E logo ficarei doido.

No entanto não quero produzir um texto de lamúria, quero produzir uma intervenção. Se, de uma forma ou de outra meu destino é a esquizofrenia, permitam-me ser propositivo e apresentar-me-lhes uma solução. Meu medo metafórico da loucura é também literalmente louco porque é um problema do qual sua lógica não permite saída: sendo uma problemática propriamente particular da minha ficção individual, não posso sair dela por qualquer concepção também individual. Nem, tampouco, do “coletivo” pensado por sua vez ele mesmo como um organismo colossal mas ainda unitário, todavia me é possível fugir desse esquema pela relação, pela participação, pelo compartilhamento. 

Assim agradeço a todos aqueles que são a condição necessária para que eu possa viver sem enlouquecer e encerro por aqui o meu lamento.

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DE VOLTA AO CHILE

 

Sinto saudades do Chile como quem sente saudades do futuro. Porque o Chile é o país do futuro. Não como um slogan, não como quem põe fé no progresso da evolução – pelo contrário, porque o Chile foi laboratório do neoliberalismo nos anos 70 e imagino que, após o capitalismo acabar consigo e com tudo, repovoaremos o mundo um pouco como os chilenos repovoaram o Chile. Sinto saudades do Chile porque se lembro de lá sei que a terra arrasada há de ser no entanto também uma terra reabitada, assim como quero muito acreditar que, apesar de seu fim, ainda será possível viver no mundo.

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Anteontem sonhei que fazia sexo oral na minha avó


Tenho tido dificuldades com os sonhos. Não é nenhuma dificuldade especial com o sono. É que, por força de leitura, acho que me convenci do animismo, me convenci de que tudo funciona com base numa certa lógica do espírito, quer dizer, do esprit francês, tanto da mente quanto dos fantasmas. Sonhar para mim não é desligar meu pensamento. Quando sonho penso demais e sem fronteiras e isso me custa muito, é algo que me cansa, me perturba. Hoje, enquanto delirava em vigília, pensei mesmo que isso pode se dever à alucinação inevitável que sofre uma cabeça tão ativa quanto a minha quando fecho os olhos, com a ação motivada daquilo tudo que apresenta resistência ao consciente. Pensei isso em vigília. "O onirismo psicótico caracteriza-se pela perda da distinção social entre alucinação e realidade", diz o google. Se eu sustentar algo que pensei em vigília terei me tornado um psicótico? De médico e louco todo mundo tem um pouco.

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NUNCA SE PODE FALAR DE MÚSICA E DE CINEMA

 

Andava refletindo no meu último banho sobre esta escolha que todos nós, hipsters de classe média, temos que fazer, por volta dos 20 anos, entre uma predileção pela Música ou pelo Cinema e, de repente, me peguei pensando na escolha que temos de fazer, nós, aqueles que se prometiam a vida de escritor, entre a vida e a escrita. Não me arrependo de ter escolhido a vida. No entanto restará sempre aqui o que de outro modo poderia ter sido.

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30 de dezembro de 2024


Após cruzar a ponte sobre o Rio Real, vindo de São Cristovão, antiga cidade de Sergipe d'El Rey, há alguns poucos quilômetros até que se entre na Bahia. Com eles, vivemos em Sergipe sob a mesma baixa pressão do resto do litoral nordestino. Não me parece um fenômeno tradicionalmente atmosférico. Segundo a ciência atmosférica tradicional, perto do mar é onde se encontram as maiores condições de pressão. No entanto, do Rio Real para cima, em todo o litoral do que sempre se chamou de Nordeste, isto é, excluída a Bahia, tudo está como sob o efeito de uma leve descompressão. Na Bahia não. Assim que se cruza a fonteira tudo é imediatamente mais denso. Não adianta dizerem que minha escrita é mistificadora e artificial. Não me ofendo. Mistificadora e artifical é a própria Bahia que minha escrita apenas imita, e a Bahia tampouco deveria pela minha escrita se sentir ofendida.
Estando já pela terceira vez aqui, tendo conhecido Salvador, Santo Amaro, Cachoeira, boa parte do litoral norte e tendo voltado um pouco já para sair — para ir ao Ceará –, desta vez, a Bahia com B maiúsculo me importa menos. Pode ser que ao fim tudo isso tenha sido uma função do meu jeito de entrar aqui desta vez, por de fininho não ter surpreendido a Bahia de forma que ela pudesse se armar para me receber, eu, esse bicho noturno que invade a casa e fareja o seu odor estonteante, pesado. Na minha caça esta é uma preparação sutil, algo que talvez não seja, mas de qualquer forma serve agora para me ensinar que o que eu buscava na viagem pode não se revelar para mim, e que assim eu tenho que procurar ativamente por outra coisa. Ou, se não outra coisa, uma outra forma de relação. Pois e se nem as coisas nem as relações estivessem dadas? Teremos que inventá-las.
Eu sequer sei se existe uma bahia com b minúsculo. É provável que sim e eu jamais venha a acessá-la, ainda que assim que pela primeira vez em que eu tenha posto o pé no aeroporto de Salvador, o Chico tenha me avisado: começa a ditadura da imanência. "Assim é" ou "É a Bahêa". Curioso que o pós-modernismo tenha me convencido que Transcendência se escreve com T maiúsculo e se deve odiá-la e imanência se escreve com i minúsculo e se deve amá-la, e nunca o contrário.
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HOJE

 

Ontem, escrevia

No estado de vigília, a gente não sai da gente, a gente pra sempre mora num não morar na gente. Nada ganha pregnância. Se não durmo profundo, continuo com um resíduo de mim mesmo do qual devo esquecer se quero impressionar-me por alguma outra coisa. Se quero me sentir na Bahia preciso esquecer profundamente meu dia de ontem, de anteontem, e o de antes de antes de ontem, e o de antes ainda – na Bahia, em Sergipe, em São Paulo, em Minas –, preciso dormir fundo. Enquanto não durma fundo, continuarei nunca tendo saído de São Paulo. E eu preciso não me levar junto. Para que eu consiga me sentir verdadeiramente em outro lugar, preciso estar desacompanhado de mim. Mas talvez para isso seja mais preciso vestir muitas roupas que me despojar.

Mas e se de repende eu não quiser mais me sentir verdadeiramente em outro lugar? Se eu quiser me carregar sempre, levar-me a muitos lugares e, não estando neles, ver no que dá?

Talvez seja preciso então não sair mesmo do lugar, em lugares diferentes. O que me parecera tão assustador, que tinha me parecido a maior imobilidade possível. Se nem saindo do lugar para sair do lugar, então como? Pela habitação intensiva desse lugar. O máximo de possibilidades que eu puder extender nesse lugar em que estou. Para viajar mais e melhor: não trocar de mim, mas me levar, a fim de me obrigar a mudar. Apenas então terei mudado, sendo eu mesmo de formas diferentes.

Embora sinta sim algo como uma nostalgia das minhas antigas obsessões. Depois que se foi maníaco nada mais tem o colorido daquela noia. Como um vício. Meu pai tinha me dito: você vai viajando e vai querendo viajar mais e vai voltando mais apático. Até que as próprias viagens se me tornam apáticas.

Ou de repente eu esteja vivendo outra forma de luto. Não da mania, não da obsessão, nem da viagem,

quando me interromperam – estava um pouco afastado, sentado com o caderno no colo e os pés no mar – para brindar algo com uma taça de espumante. Brindei, tomei muito mais, me embriaguei, e agora nada daquilo mais vale.

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O NATAL SÓBRIO DE 2024, UM NATAL SEM ÁLCOOL

 

Esse ano não gostei do natal. Não foi um dia mau. Pelo contrário: por mesmo em sua plena realização ter permanecido tão mediocre, é que o natal se revelou para mim uma data sem nada de especial. Ou talvez porque eu tenha ganhado dinheiro apenas. Não houve troca de presentes. Ganhei três envelopes com dinheiro e não dei nada a ninguém. Minha prima ganhou três brinquedos, ficou muito contente. Que me perdoe a criança que eu fui, mas aquela felicidade estúpida para mim só tornou isso tudo ainda mais banal. Quem te deu esse presente, foi o Papai Noel? Não, mãe, foi o papai. Ela sabia de tudo. Jamais ser condescendente com qualquer criança. Elas entendem tudo. Hão de entender que essa data que poderia ser bela murchou, tornou-se vã, estúpida, medíocre, mais ainda do que muitos adultos. A maior beleza será enfim aceitar o fato inevitável de se reconhecer, esse de sua triste decadência, quando amadurecermos e já tivermos esquecido a candura que na verdade nunca chegamos a ter sequer em nossa infância. Mesmo porque a lição de Jesus Cristo é estéril. É preciso jamais perdoar. Não perdoar a nada, não nos perdoar pelo que somos, não perdoar o natal pelo que se tornou, não Roberto Carlos, não o amigo secreto da Rede Globo, não a sua reportagem que meus avós acabam de assistir sobre o reisado que o apresenta na forma suave, inofensiva, burra, não perdoar Clarice Lispector pela forma como tratava suas empregadas, por ter escrito cartas à sua irmã sobre "como domesticá-las", não o pop e a definição de pop como "gostar de gostar", não a Selena Gomez cantando All I want from christmas is you no carro daquele entrevistador que entrevista as pessoas no carro e não a todos os outros famosos que também são fãs de outros famosos. Procurar quem ocupa o topo dessa cadeia de poderosos que admiram outros ainda mais poderosos, cortar a sua cabeça – como o rapaz gostoso que matou o CEO e, talvez com mais sorte, fazê-lo logo, e fugir depressa.

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RELATO DE VIAGEM


Ñuñoa, 15 de nov

Certas coisas parecem que vão se desmanchar se forem sopradas. Parecem não pertencer a tempo algum: um efeito, elas próprias, de um vento anterior que veio depositá-las onde hoje estão. Assim a temporalidade incompreensível de uma casa tupi feita de folhas, primitiva não porque está aí há muito tempo, e senão porque é como se nunca pudesse ter estado ali. Ou uma cidade, isto é um assentamento, com história de tipo moderno, data e feriado de fundação, como Santiago, que entretanto parece ter sido construída como uma aldeia nômade. E como se eu pudesse imaginar muitas intersecções possíveis entre a história da sociedade chilena e da sociedade americana, e no entanto elas não fossem necessárias diante da evidência estética de que são dois países feitos de brinquedo. Mas há brinquedos e brinquedos, e há os menos lúdicos e mais violentos, e, melhor, há parques e parques de diversão, e como esse há os sem diversão. Nem todos desse último tipo inclusive apontam para o céu como Disneyland. Talvez exista um aqui todo feito de poeira do chão.


Valparaíso, 16 de nov

Ficamos pouquinho aqui na Ilha, mas deu pra entender tudo, seria possível dizê-lo não enquanto um imbecil? Desde que se dissesse isso sobre o Chile. Quando se entende que não há o que entender, quando o lugar não se revela por meio de um mistério impenetrável e tampouco não revela. Um lugar nadificante; eu, que não sei nada sobre o Chile. Que li um livro do Roberto Bolaño sobre o México e outros contos dele no avião. Que, sobretudo, e não como ele, nada acredito em algo como a alma das nações. Não, eu me recuso a tratar como ser essas coisas que gostaria que nunca tivessem vindo a existir e talvez por isso mesmo não existam. Um lugar nadificante, mas um nada capaz de assumir múltiplas formas em Valparaíso. Foi decerto o resultado acidental de uma experiência sci-fi bizarra com os Studios Ghibili. (O metaverso tem que acabar.) Pode ser que o parque de diversões sem diversões que o Chile me pareceu – Travel to someplace else than Argentina, Argentina is the most boring place in Latin America eu disse a uma gringa residente por aqui, e ela It is your first time here in Chile, isn't it? –, pode ser que fosse um parque temático dos Studios Ghibili. É coisa do Pacífico. Neste parque além-mar o acesso daria-se apenas por botes de luxo, para a experiência japa mais exclusiva possível aos turistas americanos. No meio tempo, esse tempo que sempre rompe antes do tempo – e antes também porque precisamente só pode surgir depois do fim, quando acontece de se poder ver as metades, o meio das coisas, porque está depois do fim e antes do começo –, Valparaíso saiu estranhamente desse projeto que não existia mas que em algum lugar devia de existir, e por isso mesmo deu-lhe vida, e essa estranha forma de evocar a Alemanha no Pacífico Sul é hoje a fantasmagoria de um desenho animado. Belíssima, por sinal, das partes mais às menos apocalípticas, partes como os paseos dos cerros Concepcion e Alegre que não sei onde encaixar nesse polo de maior a menor. Brinquei com as meninas: peça ao Chat GPT que te faça uma imagem em que Campos do Jordão seja uma favela litorânea e obtenha isso daqui. Riram bastante. Inclusive a gringa que não sabia o que era Campos do Jordão. Não acho que estou sendo severo demais. Valparaíso é linda. Nada do que eu escrevi contradiz isso. Não estou sendo irônico, nem mesmo agora, e não há nenhuma ironia em reafirmar isso. Sabe disso quem sabe da beleza rara das coisas esquisitas, o de la belleza esquisita de las cosas raras. Tanto quanto, na tradução, essas quatro palavras trocadas. Ainda mais quando uma cidade tão pitoresca quanto essa possa ocupar tantos hectares de montanha diante do mar, porque as cidades portuárias nunca abandonam, nem mesmo sob o jugo mais cruel do implacável Império Hipster, sua missão inaugural. Valpo, será ainda assim quando os zumbis vierem nos atacar, ou foi assim que ficou depois de seus assaltos finais?


Valparaíso, 17 de novembro

Ontem não escrevi sobre o éx-carcel dessa cidade, o maior de toda ditadura chilena. Na minha versão pós-realismo fantástico, que seria denunciada justamente como capitalismo fantástico, o parque não cabia. A sobriedade que lá se encontra desafia toda fantasia. A sobriedade de lá, ela apenas: não acho que os cerros de Valparaíso sejam menos sóbrios ou menos violentos, mas são as pedras molares dessa versão e não quem as derruba. Já o éx-carcel de Valparaíso é radical. Existe para lembrar, radicalmente, lembrar a todo custo, mesmo contra o esquecimento azul do céu sob e o oceano diante do qual se encontra. Hoje, também assim contra o mar, vi, alguns quilômetros ao norte, em Punta Pite, os desenhos de Teresa Moller, embora o mar seja pouco importante por lá. Toda atenção se concentra nos recortes retos da artista contra o rochedo. Nem tudo que é torto é errado, é verdade, e Deus escreve certo por linhas tortas. E sem dúvidas nem tudo que é reto é certo, pero que hay los rasgos derechos que son corectos, los hay. Menos de sua disciplina, da sua clareza ou ordenação que das sendas que abrem; não dos caminhos, mas das fendas. Quem sabe, se perseguíssemos essa ideia até o final, como hoje andamos atrás de seus passos, descobriríamos que a geometria não só não pode disciplinar como não pode ser uma disciplina, nunca, somente uma faculdade. Nunca uma filosofia ou uma metafísica universais, e sim os regimes de tradução possíveis para muitas particularidades. As retas não se equivalem entre si: um círculo é um círculo, uma pessoa é uma pessoa; e no entanto de que círculo ou pessoa falam? E, no entanto, não se pode trilhar pelas pedras de Teresa Moller até o final. Voltamos, como de costume, pelos mesmos riscos. Acredito ainda mais que ela escreva em algum tipo não florescido de língua. Aquilo só pode ser escrita, se a escrita toca as coisas pela superfície, e suas linhas exigem que se ande por elas para que sejam lidas. Enquanto, eis o esquecimento na e da escrita, nos esquecemos do mar. Que séa un sitio de memoria: acuerdate del mar.


Santiago Centro, 18 de novembro

1. O melhor x-churrasco do mundo é feito pela Confitería Torres, em Santiago do Chile. Apesar disso, não se chama x-churrasco. O melhor x-churrasco do mundo é chamado pela sua comunidade de Sandwich Barros Luco.

2. Ramón Barros Luco foi um presidente chileno da década de 1910 para quem se inventou – mais do que quem inventou – o sanduíche, a despeito do que devem escrever os manuais gastronômicos da cidade.

3. Não há como inventar o que já existe ou poderia existir. Eu poderia dizer nada se cria, tudo se copia. Ou eu poderia escrever que o que virtual é real mesmo sem ser atualizado. Ou, pelo lado avesso da moeda, lembrar que se nada se perde e tudo se transforma, então que nada surge do nada. E assim eu poderia concluir que o Barrios Luco é uma versão da série múltipla do x-churrasco. Nesse caso, diríamos – a despeito dos manuais gastronômicos da região – que o sanduíche foi transformado por Barrios Luco, ou, melhor, pelos cozinheiros da Confiterria Torres.

4. Se não se pode criar e sim transformar o que já existe, infelizmente ainda se pode patentar uma dita criação. Um sanduíche de filé mignon com queijo não pode ser criado, pode variar e infelizmente pode ser patenteado com o nome do presidente que exigiu a nova versão para os funcionários desta confitería.

5. A metonímia sobre a metáfora: as coisas emprestam os nomes daquilo que lhes pomos ao lado. Entre as palavras, reina a contiguidade.

6. Entre os sanduíches reina a verticalidade.

7. A Confitería Torres funciona desde 1879. Não sei o que lhe dá sua continuidade. O lugar, decerto, a família de proprietários, talvez. Nunca terá sido vendido? Um contrato de venda do estabelecimento garantiria a continuidade, quem sabe. Mas como, a receita? Uma receita secreta de x-churrasco. Não me parece verossímil.

8. Um pão macio e crocante, tostado por dentro e por fora. Um filé suculento, mas fino, igualmente macio, e bem temperado. Queijo derretido, quase doce. Servido muito quente.

9. Em Concón, há uma empanada tradicional de pino de locos, um marisco da região. Quem lhe guarda a patente é o Empanadas Fritas Las Deliciosas. Quando chegamos, as empanadas de pino de locos haviam acabado, então fomos ao Restaurant La Perla del Pacífico. Nem sempre a patente é a melhor pedida. Não provamos as do Las Deliciosas, mas as do Perla del Pacifico estavam divinas.

10. O Mercado Central de Santiago é fake feito pra turista. Terrível. Os mercados La Vega Central e La Vega Chica são bem roots, típicos, tradicionais. Terríveis igual.

11. Em Valparaíso, um italiano faz em sua cafeteria um excelente tiramisú e tão boa quanto torta della nonna. Pensei que a receita dessa torta de creme de confeiteiro, limão, nozes e amendoim fosse da sua avó, algo como uma patente familiar. Mas é uma receita tradicional italiana. A Itália lhe guarda a patente, embora uma nonna seja uma coisa de carne e osso e a Itália não tenha nonna, muito menos corpo.


Santiago Centro, 19 de novembro

Ao acessar o segundo andar do Museo Chileno de Arte Precolombino, mal se lê, inscrito na pedra de um monumento logo à frente da porta, uma frase em que o fundador Sergio Larraín Garcia-Moreno afirma que, das artes de todo o mundo, sempre foi a dos povos primitivos a que mais lhe comoveu. Sua noção de arte precolombina é uma versão aborígene da arte sacra que está vinculada com a mesma institucionalidade estatal de uma igreja. Eis que o filme da Disney é A Nova Onda do Imperador e não A Nova Onda do Chefe Contra o Estado. Nessa coleção a arte indígena é, tem de ser, a arte das grandes civilizações, expressão que mesmo os textos curatoriais conservam para descrever a complexidade e superioridade cultural das sociedades andinas e mesoamericanas. Das sociedades que se encontram ou um dia se encontraram no que hoje é o Brasil, por exemplo, há duas urnas marajoaras. Então que estranhamento descer ao piso inferior, onde está a exposição Chile antes de Chile. Como o museu de arte sacra do Vaticano organizaria uma exposição arqueológica da Roma Antiga? Pois é. Nesse piso exibem-se cerâmicas em série com legendas e placas tímidas, como pedindo desculpas por não terem sido grandes sociedades a se admirar de verdade aquelas que o estado chileno exterminou. Mas o Estado só enxerga relações estatais; aonde quer que olhe não suporta o que não for hegemôneo e homogênico. Quem diria, gostei muito mais do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos. Mesmo com sua visão pacífica da democracia, penso que ainda assim ali há mais interesse pela diferença. (Embora quase não fale do genocídio indígena durante a ditadura. Quem quer falar dos Mapuche? Não. É sempre necessário antes se comover com dois estudantes universitários estuprados e desovados. Eu mesmo sou culpado e me comovo muitíssimo.) Saio chorando dos dois museus, que fui visitar sozinho. Ninguém quer saber dos Mapuche. Ninguém quis vir comigo.


Vitacura, 20 de novembro

Paga-se muito caro para geralmente se comer não tão bem. Um país nos conquista pelo estômago. E pelo bolso. A que pese a Santiago, apenas em terceiro lugar vem cordilheiras ao fundo, isto é, sua paisagem, quer dizer, nos conquista pelos olhos. Fora que não tenho sentido especial atração por quem vive aqui. Mas isso é bom: não sentir tesão é um bom seguro contra frustrar-se e sentir-se melancólico. Não sei se estou falando do Chile. Acredito que nunca cheguei a falar do Chile. Que Chile? Crianças, na próxima frase tentaremos falar sobre o Chile. A situação do seu transporte, mais precisamente: não há cobradores, mas uma catraca ao lado do motorista, por isso os estudantes me ensinaram a dizer buen día, pedir permiso e então pular a catraca. Inicialmente pensei que pudesse se tratar de uma desobediência civil silenciosa, como se os motoristas da cidade toda assentissem e se fizessem cúmplices do movimento estudantil pelo passe livre que, anos antes, produziu o estalido social. Ou, então, pelo contrário, poderia ser porque o Chile é provavelmente, como me parecia, o país mais europeu da América Latina. O bom dos europeus é que, contanto que você não se meta na vida deles, eles não ligam, me disse o Chico em Portugal. Talvez os motoristas simplesmente não se importem com os pula-catraca. No entanto percebo como meu escândalo é mais psíquico que sociológico. Eu, tantas vezes mesquinho e anarconformista, me surpreendo com gente que não exerce seus pequenos poderes. Embora também nunca fizesse cumprir as ordens com as quais não concordasse, quando eu mesmo trabalhava em uma instituição. Mas é que no Brasil se paga pela passagem e mesmo assim pode-se ouvir alguma bronca do cobrador. E eu não tenho nenhum compromisso com a defesa do Brasil. Gostaria de rever o que escrevi antes. Santiago não é uma cidade fantasma, eu que sou o fantasma. Por isso vaguei, evadindo suas catracas do Barrio Franklin até este café na Municipalidad de Vitacura, onde pago por este pedaço de torta os mesmos que lá paguei pelo almoço inteiro: seis luca. É uma casa deliciosa em Vitacura, com jardim, piscina, ela me disse com ternura. Mas também pode se dizê-lo com cólera.


Santiago Centro, 21 de novembro

Curso de viagens. Oficina número nove. Em países tediosos, ande muito, vá a todos os lugares, experimente todos os cromatismos do tédio. Não há apenas o tédio cinza; aliás, entre os tons de tédio o cinza é apenas o mais óbvio, vulgar. Também há tédios azuis, tranquilamente poderia se dedicar uma tese de capacitação técnica ao tédio roxo, y por qué no al rojo?, à intensidade cega de um tédio amarelo. Não o verde. O verde é uma cor que jamais pode ser monotemática. Uma observação: evite pagar pelo tédio. Em países tedioso nada que é caro vale a pena. Entre as nobrezas particulares a cada emoção, a que exibe o tédio é justamente ser universal e gratuito. Universal no sentido burguês da coisa, é claro. Evite pagar pelo tédio desconsiderando que pagou um vôo para chegar à cidade de Santiago do Chile, em seu tempo livre. Assim tenho me considerado um escritor chileno. Tomo notas sem parar. Embora não esteja realizando nenhum estudo. Embora tudo seja estudo. Escrita não: nem tudo é escrita. A escrita precisa da reescrita, senão é como desenhar, é outra coisa. Sem juízo de valores: eu mesmo prefiro os desenhos à escrita com sua qualidade distintiva de reescrita. Por isso deveria tornar-me desenhista? Discordo. Seria como responder a quem reclamasse de um pênalti perdido do Neymar, então faz melhor, à maneira dos adolescentes. E o Neymar é um imbecil. Diferentemente do que pensam os adolescentes. Olha que eu desenho bem. Olha, forma iminente de loucura a escrita, se além do trabalho obsessivo com a linguagem, a reescrita, a escrita ainda requer que se imagine um interlocutor com quem conversar, olha. Isso porque escrevo em meu diário. Limitações da língua, sempre em busca de um outro alguém, e ainda bem. Afinal por que cantaríamos as canções enquanto as ouvimos senão pelo prazer articulatório envolvido na percepção da fala? Já que é assim gostaria que o interlocutor imaginário respondesse a essa questão que me surgiu subindo o Cerro Santa Lucía. Charles Darwin subiu lá e descobriu a origem das espécies. Imagine se lá descobríssemos a origem da canção?


Recoleta, 22 de novembro

A dimensão demiúrgica da palavra Miguel. Miguel é um nome ou uma palavra? Não sei. Algum Miguel escreveu seu nome, essa palavra, em uma parede do Museo de la Solidaridad Salvador Allende onde cada visitante deveria escrever a palavra resistência. Junto a uma vez a palavra arte e outra a palavra amor, são as únicas inscrições que desobedecem a proposta. Vi a parede há poucas horas, mas um Miguel o fez há pelo menos dois meses; quando a Clara visitou o museu pela primeira vez, já tinha lido esse nome por lá. Todos os miguéis que conheço seriam capazes disso. Eu não me envergonho. Um nome é um destino. Em hebraico, mikha'el é quem é como Deus. E Santiago é algo como a Terra Santa. Da rua Palestina se vê o Cerro San Cristobál como o Monte Sinai. Não sei o nome do monte sinai em árabe. Me envergonho mais disso que do nome Miguel na parede da resistência, onde eu mesmo poderia muito bem tê-lo inscrito. Só agora pesquiso e vejo que é Jebel Musa. Pela migração devido à semelhança com a Cisjordânia, em Santiago encontra-se a maior comunidade palestina do mundo fora do Oriente Médio, que talvez em não muito tempo se torne a maior comunidade palestina do mundo. Escrevo isto na Panadería Fufu, depois de comer um knafeh que a Clara chamou de pornográfico. Ela tem dito muito isso sobre os doces chilenos. Os bolos aqui são pornográficos, aquele kruchen era pornográfico, me pergunto sobre o que ela gosta na cama, mas deve envolver açúcar e derivados de leite. Ou então algo excessivo. Sim, envolve algo que seja demasiado, com certeza.


Providencia, 23 de novembro

Tenho pensado muito na gente morena do México. Que eu jurava que se viam como índios e reivindicavam isso. Ou que eram vistos como índios e sofriam uma violência que mobilizava isso. Mas não. Ponto para os afropessimistas, no México não se odeia a gente por ser descendente de indígena e sim pela sua cor escura. Y eso no se da igual. Clara: Yo habia dicho a Pedrí que los chilenos son muy simpaticos, el me contesto que es solo porque soy una chica guapa. Pero conmigo son igual simpaticos, eu respondi, y yo no soy una chica guapa. Sí es que eres una chica guapa, falou a Sthefany. Que é mexicana. Não é verdade que aos olhos dos gringos não somos brancos e sim todos latinos. Na Península Ibérica, em Portugal ou na Espanha, perguntam a mim e à Clara se somos italianos ou franceses. Sou mais claro que aqueles que teriam colonizado o país em que vivo. Os avós do meu pai migraram da Europa, no séc. XX, devido a incentivos para se branquear o Brasil; sou fruto de um projeto de branqueamento da sua população. Os avós da minha mãe eram índios, mas isso importa pouco, na verdade isso não importa nada. Ninguém nunca quer saber dos Mapuche. Uma vez uma historiadora dos Estados Unidos dividiu a historiografia da escravidão e colocou meu pai como um historiador of color, porque, como ela que é negra, ele é latino. Ao fim da sua fala, meu pai lhe lembrou que ele fazia parte da supremacia racial do Brasil. Um país escravista. Para os mexicanos, gringo designa somente os americanos. Acredito que apesar de serem simpáticos comigo e alguns me acharem lindo, muitos chilenos não se vêem como índios. Uma vez briguei com meu pai porque, tendo eu dito que a Regina Casé era preta, ele se indignou dizendo é claro que não, afinal os nordestinos do agreste são herdeiros de povos indígenas da região. Mas a Regina Casé não é nordestina nem preta. Nasceu no Leblon. Depois eu vi um vídeo com seu genro em que ela falava que, enquanto ela que era branca não sofria discriminação, pessoas pretas como ele sim. No México, a Regina Casé seria considerada morena. Na escola, chamavam a June, a Roberta e a Bebé de meio moreninhas. Os avós da Bebé vieram do sul da Itália, o pai da June é um milionário do agronegócio goiano e os da Roberta não sei. Lembro que seu pai morreu quando estávamos no colegial. É uma escola muito rica, muito cara. Não gosto de dizer de elite porque elite quer dizer os melhores e não acredito de forma alguma que ali estejam os melhores. Minha mãe trabalhou lá por quase 30 anos. Certa chefe um dia lhe disse, Ana, quando você fica brava fica parecendo uma índia botocuda, comedora de gente, antropófaga.


Pudahuel, 24 de novembro

Sexta. Viernes. Aeroporto de Pudahuel. Encontrar com a Clara em sua casa de esquina em Ñuñoa. Caminhar pelo Barrio Italia. Jantar no Silvestre Bistrô. Merluza austral com batata, acelga e aspargos. Vinho e michelada mexicana (cerveja com doce de tamarindo que a Sthefany trouxe) na casa da Cris, catalã, com as chilenas Olí, Mahuí e Amanda. José Domingo Cañas. Sábado. Sábado. Viagem de carro. Sara e Marina. Em Quilpué, a casa em que Roberto Bolaño viveu dos seus seis aos 11 anos. Trabalhando como cobrador de ônibus. ValparaísoAscensor Espiritu Santo. Jantar no Restaurante Circular: caldillo de congrioChardonnay Sour e pão com maionese. Paseo YugoslavoCerro Alegre. Éx-Carcel de Valparaíso  e Parque Cultural. Ascensor Reina Vitoria. Cerro Concepcion: Paseo AtiksonPaseo Gervasoni. Jantar no Bar Restaurant Mi Casa: empanadas fritas de mechada queso e camaron queso e pisco sour micasa. Música ao vivo, boa música ao vivo em um restaurante, o que é raro. Gran Sazón Nazca, ceviche e arroz chaufa. Cerro Bellavista. Domingo. Domingo. Museo a Cielo Abierto. Mercado Puerto. Café da manhã no Café Portomaggiore, do italiano Leonardo Diaferia: sanduíche de boscaiola (queijo, creme de cogumelos e tocino), tiramisú e café expresso. Conjunto Habitacional Quebrada Marquez, construído em 1949 pelos pedreiros e projetado por Pedro Goldsack. Viña del Mar. Museo Fonck, homenagem ao explorador prussiano Franz Fonck, geólogo, arqueólogo, próximo de Humboldt. Coleção de povos indígenas do Chile – Diaguita, Tehuelchues, Selknan, Mapuche, Rapanui e mais – e bastante contexto etnográfico, que no outro museu não há. Moai de Ahu One MakaihiPunta Pite. Em Papudo, no La Roca: marraqueta com pebre, merluza frita com arroz e papa mayo. Concón: comer, no Perla del Pacífico, empanada frita de pino de locos e ver o sol-se-pôr do alto de suas dunas. Cerro Bellavista. Segunda. Lunes. Café da manhã no Café Portomaggiore: sanduíche de ave palta e torta della nonna. Na verdade, acho que a Itália tem sim corpo. José Domingo CañasLastarria. Librería Editorial USACHCentro Cultural Gabriela Mistral. Mercado Central. Almoço no La Vega Chica: marraquetas com pebre, caldo de pata e sopaipillasLa Vega CentralPlaza de Armas. Palácio e Centro Cultural de la Moneda, exposição de arpilleras dos anos 1980. Plaza de la Constituicion. Confitería Torres: sanduíche barros luco. O restaurante é de 1879 e o sanduíche não tem igual. José Domingo CañasBar Rapanui: chorrillana piscola. A comida é boa, mas sou brasileiro e gosto de atendimentos ternos e cordiais. Não me importa a sociologia brasileira, a revolução não será fria, técnica nem profissional. Sem propina para o Bar Rapanui, com propina a todos os outros; gasta-se muito com a propina. José Domingo Cañas. Terça. Martes. Museo de Arte PrecolombinoSalvador Cocina y Café: empanada de prieta com salsa, ají e pebre, coxa de frango com cogumelos, arroz pilaf e cebola escabeche; chá gelado genial, de abacaxi, pepino e menta. Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. NAVE. Por fora. Unidad Vecinal Villa Portales. Quase fomos a El Hoyo e quase ao Bar Liguria, mas, enfim, Fuente Alemana: sanduíche italiano de lomitos. Italiano é qualquer sanduíche com maionese, abacate e tomate, embora maionese, abacate e tomate não venham da Itália, mas da América. Para a Clara um outro sanduíche gigantesco. José Domingo Cañas. VinocracíaEm português, brega; em espanhol, malgusto. Salon de Pool Los Quesitos, aprender com Sara, Marina e Sthefany a jogar o bilhar. José Domingo Cañas. Quarta. Miércoles. Parque Bicentenario de la Infancia. Cerro San Cristóbal. Quase almoçar no El Barrón. Almoçar no Mercado Matadero-Franklinmarraquetas com pebre e pastel de choclo. Panadería La SuperiorCEPAL. Por fora. Municipalid de Vitacura e Parque Bicentenario. De los adultos. Bluebird Cafe: kruchen de nuez e um café expresso. Peruano. De presente, um bilhete para subir de ônibus até a virgem e outro presente, para subir de funicular. A gentileza dos chilenos. A Virgen de la Inmaculada Concepción. A cidade vista de cima. A cordilheira vista ainda de baixo, agora um pouco menos abaixo. José Domingo CañasLos Pincheira: completo italiano. Mais um completo italiano, de trinta centímetros. José Domingo Cañas. Quinta. Jueves. Madeleine Panadería: pain au chocolat e café expresso. Parque Bustamante. Café Literário do Parque Bustamante. La ChasconaCentro Cultural la Moneda, exposição Atacama-Hamburgo. E a violência colonial. Salvador Cocina y Café: mollejas chupas de guatitas; chá gelado genial de etc. Museo de la Ciudad de Santiago, na casa colorada, com a fachada mais antiga da cidade. Cerro Santa Lucía: Fuente Neptuno, Jardín Darwin. Museo Sacro de Arte Colonial São Francisco, os quadros, os pavos e de supresa a medalha do Nobel de Gabriela Mistral. Iglesia de San Francisco; apesar do que diz a Lorena, a mais antiga da cidade. Uma igreja que foi derrubada do alto do morro e reconstruída embaixo, no séc. XIX, não pode ser ainda a mesma igreja e assim a mais antiga da cidade. Ou pode? Universidad de Chile Campus Juan Gomez Millas, Facultad de Filosofia y HumanidadsUniversidad Diego Portales, ver a palestra de Alejandro Zambra. Ficamos sem entrar. Não havia palestra nenhuma de Alejandro Zambra. Plaza Brasil. Vinho branco. Jantar no Bar Valdivia: sanduíche de merluza austral empanada, salsa tartara, cebola morada, tomate, coentro, ají verde e mostarda dijon. O que que para você precisa ter em um bom sanduíche? A Clara perguntou. Plaza Pedro de Valdivia. Fim àquele vinho branco. José Domingo Cañas. Sexta. Viernes. Empanadas Don Guille: pino solo pino con merkén. Museo de Solidarid Salvador Allende. Cerâmica do malaguês Picasso. Pinturas dos uruguaios Figari e Gamarra. Sobretudo as molas dos Guna Yala. No entanto, as únicas sem legenda e placa. Dé qué pueblo indígena son? O guia do museu responde no son indígenas, son tejidos contemporáneos. Esse imbecil sem igual. Os latino-americanos não merecem dó. E os europeus não merecem perdão. Muito menos eles, dó, e nós, latino-americanos, perdão. Na Panadería Fufu, café de olla com cardamomo. Cementerio General. Túmulo da Família Allende. Túmulo de Violeta Parra. Memorial aos detidos e desaparecidos. Memorial aos executados políticos. Todo o meu amor está aqui e ficou pegado às pedras, ao mar, às montanhas. Café Restaurant Las Lanzas: sanduíche italiano de mechada, sanduíche de merluza frita com maionese, pimentão grelhado, e pisco sour. Fuente Suíza: empanada frita de mariscos. Vinocracía, infelizmente, de novo. José Domingo Cañas. Sábado. Sábado. Monasterio Benedictino Santísima Trinidad de Las Condes. Com toda sua luz e paz. Com a religiosidade que os gatos cultivam nas caixas de papelão. Com a necessidade de intermediar a relação com Deus por meio de ritos como de frestas, de clarear sua morada nunca por uma luz direta que nos cega. E com poucas palavras para não ferir o seu silêncio. Casa de Lorena e Diego Chonchol em Vitacura, e, sim, muita ternura. Aperól, vinho rosé, arroz branco, salada com abacate, ceviche de merluza, salmão e camarão, sorvete de arándano e seus filhos Claudia e Lucas. José Domingo Cañas junto a Sthefany e Sara. Íjole Taquería: tacos de cochinita pibil. Como é da península, nem na Cidade do México encontra-se como por lá, disse Sthefany Daniela. Carrete da Olí. José Domingo Cañas. Domingo. Domingo. Despedir-se da Clara e de Santiago. Deixar a Clara e Santiago. Sair de Santiago. Voltar.

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UMA CRÔNICA


Sem os nomes que eu não tive, não se poderia jamais preparar-se o meu nome. Como eu, também ele foi cozinhado na barriga da minha mãe. Mas eu, que não o entendia quando criança, reclamava:

– Mãe, mas por que vocês não me deram um daqueles dois nomes?

Não sei se eram mesmo melhores ou apenas maiores. Se bem que Jorge Miguel – ou Miguel Jorge – brilhavam, sim, compondo ao nome que tinha e tenho, o nome que meu pai quase teve, mas não chegou a ter. Não sei se eram melhores, maiores, ou se eram apenas mais uma coisa destinada ao meu pai que eu também poderia ter tomado para mim, assim como minha mãe, a namorada que eu lhe tomei ao nascer.

Jorge, porque meu pai nascera ao dia 23 de abril de 1972, data em que se celebra o Dia de São Jorge, e minha avó arrependeu-se um pouco de não o ter homenageado. Pois meu pai acabou por ficar com aquilo que já se lhe destinava: o primeiro nome do nome composto do seu pai, Rafael Dirceu, avô que não conheci, mas de quem meu pai guarda portanto um pedaço. E eu, por minha vez, da mesma forma acabei por compartilhar com meu pai um nome, esse que não tivemos. Também eu lhe guardo um pedaço: seu e meu pedaços de Jorge, que não vieram a nascer, mas que se acrescentaram às palavras ouvidas por nós de dentro do útero das nossas mães.

Miguel, essa outra coisa que ali se me destinava; o amor e a miopia de Miguilim, personagem de um dos muitos livros que minha mãe me leu grávida, em voz alta: a novela Campo Geral, cujo autor sabia e forjava mais do que ninguém o quanto nomear era originar, gerar, instaurar, era dar sinais e contar, já, a história de alguém, criá-la. Dizer que um nome é um destino não é curvar-se ao império historicista da etimologia. Um nome, além de remeter a uma morfologia arcaica, remete a uma pessoa, e outra que veio antes dela, assim como o nome Ana da minha mãe remete ao nome da santa que, como minha mãe a mim, ensinou Nossa Senhora a ler. Sob o som da palavra destino tudo vibra: as letras da palavra destino deslocam o sentido da História não só como história de morte, mas como história de vida. Em um destino, o passado não explica o presente. O presente destina o passado, de trás para frente.

Não sou diferente do meu pai e da minha mãe em considerar Campo Geral a história mais bonita que já li, e me emociono se penso nesse menino a quem o direito de uma vida não violenta foi restituído por uma pessoa que vinha de fora, sem ter por que se preocupar a não ser pela própria preocupação de cuidar. Penso no olhar do médico para criança, na criança que ganhou um par a mais de olhos; mas eu – que uso óculos desde os meus três anos –, ao contrário, escolho no meu destino este nome pela sua violência. Miguel é quem enfrenta o diabo e disputa o corpo de Moisés, Miguel é quem é sincretizado como Exu, Miguel é patrono da cavalaria medieval, é o Arcanjo dos exércitos e dos militares.

E então visto meu nome como um nome de guerra, e saio protegido, armado, feito São Miguel, feito São Jorge.

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Certa vez disse para alguém que eu e Totô temos uma amizade romântica. Eu completei: não no sentido amoroso; eu e Totô pintávamos juntos aos 15 anos, acreditávamos estar no caminho de qualquer direção artística certa, trocávamos email sobre o que líamos e líamos muito, não tínhamos celular, a gente não tinha rede social nenhuma, nossa estética era romanticamente tanto moral quanto ética, e começamos a escrever também poesia juntos, de tal forma que até hoje somos como que um dos únicos leitores um do outro. Além disso, havia – e quanto a isto ainda há – qualquer coisa de um gênio romântico: nossas brigas intempestivas, nossas crenças resolutas que já nos fizeram romper e reatar umas três vezes, acredito. Totô não passa cinco minutos sem que se irrite profundamente com algo que digo, e eu, que sou mais paciente, até que consigo se não passar de sete.

Portanto sim um tanto de sentido amoroso. Aliás quando tínhamos 16 anos houve até uma noite em que ele quis me beijar um pouco.

Hoje ele tem uma namorada taiwanesa gata. Ontem lhe mandei mensagem dizendo que gostaria que eles fossem os padrinhos do meu primeiro filho. Espero contrapartida: eu sempre disse que adoraria ter filhos de olhos puxadinhos.

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QUANTO AO CINEMA

 

De tal forma o reconhecimento das grandes virtudes de algo responde a seus grandes vícios que, na verdade, o movimento é um só: do seu ponto forte se faz seu ponto cego, e o contrário. Fernando Pessoa o compreendeu melhor que ninguém. Porque Campos é tão metafísico, verborrágico: é tão infinito, mas tão limitado. Por ser Caeiro excessivamente didático que é pernóstico e humilde, é um idiota e um mestre. Na sua aristocracia, Soares encontrou aquilo que procurávamos tanto e que tanto precisamos condenar. Mas apesar da filologia pessoana, não considero sua obra incompleta e sim aberta. As posições trocam-se, sempre, estão sempre transformadas: é como se Caeiro, Campos, Soares, Reis, ao mesmo tempo, estivessem inacabados e continuamente a se referir, a se reescrever, a escrever Pessoa — de novo. Tanto nunca quanto para sempre.

Depois de comentar um autor tão grande me meterei a me comentar. Não sei se será ironia ou heresia. Me basta que essas palavras rimem.

Também pela implicação recíproca enxergo qualquer coisa como a minha poética. Poética – não no sentido da obra do livro do autor – no simples sentido próprio ao que faço, e como vejo as coisas. Meus vícios poéticos são virtuosos, minhas virtudes poéticas são viciadas. Longamente poderia aqui arrolar várias. Por exemplo essa minha maniazinha provocativazinha polemiquinha, que é chucra e eu não abro mão. Se da brincadeira vem contigência, vejo vindo também necessidade.

Ou que seja isso de eu não gostar de cinema, sem dúvidas. É uma virtude: ignoro a sétima arte, a mais moderna. Ignoro a sétima arte, a mais moderna: a frase por si dá conta de denunciar à sua vez meu tremendo vício.

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QUANTO À LOUCURA

 

O pensamento ao se imitar nas coisas não é um degredo em relação a elas, mas a nossa forma de participar delas, de estabelecer uma relação possível com as coisas. O meu pensamento, por se imitar no mundo, não é um exílio do mundo, pois é, antes, um encontro com ele; é — antes ainda — o mundo. Não sou eu que me espelho nas coisas, é o mundo que, matéria da qual se forjou meu espelho, espelha-se em si. O meu pensamento está no mundo e nas coisas, é mundo e coisa entre as coisas — é do mundo e das coisas. Foram eles que me deram essa forma muito específica de imitá-los (isto, é de pensá-los) que, antes de ser restrita, é a única condição de liberdade: definida não mais como isolamento, e então como pertença.

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PARA O TÉO


Não sei se a poesia é filosófica. Sei que a Filosofia é um discurso paranoico e que a paranoia é um estado de sítio contra toda e qualquer contaminação. Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final, e sei também que o poema é o discurso contaminado por excelência. Absolutamente, tanto quanto qualquer discurso contaminado será poético, no sentido não-grego e anti-etimológico da palavra poeta: onde se descobre na coisa o que não é da coisa. Definir o signo em termos de significante e significado é defini-lo, mais que a partir de sua identidade, a partir da sua alteridade. Por isso vou me lembrar do sensível e inteligível de Agostinho e chamar o signum simplesmente de um sinal que aponta para o outro. Os sinais em rotação seria um título menos aurático, mas de fato mais poético: de repente, me imaginaria em meio a uma rotatória na saída da Rodoviária de Belo Horizonte, quando os meus olhos batessem com a sua lombada na estante.

A Filosofia, que é tão paranoica, tem muito a aprender com a poesia. Eu, que sou tão hipocondríaco, sem dúvidas tenho muito a aprender com o desejo de contaminar-se da poesia. E a poesia — que pode até não ter o que aprender com a Filosofia ou comigo: ela quer mesmo assim. É o seu jeitinho de ser.

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REDESCOBERTA DA LÍNGUA

 

Aquele bardo baiano havia já entendido o prazer orgânico da língua quando cantou "ele me deu um beijo na boca e me disse", e, dois anos depois, "gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". Ou, em termos técnicos: tinha entendido a intersemioticidade das linguagens do beijo e da fala. Ou, em termos práticos: cala a boca e me beija.

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QUANTO AO MEU ÚLTIMO POEMA

 

A religião material da concretude também é uma forma de transcendência. Ela também busca religar-se com etc; ao que parece, a ligação com uma puta duma propagas do Washington Olivetto, méo. Não faço questão de uma poesia com experimentação de linguagem. Não tenho o último modelo do IPhone 15. Nasci em São Paulo, mas sei de extensões continentais e insulares. Ouvi falar de outras intenções, também. Para mim me basta uma poesia significativa, me basta se tiver significância.

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DOIS SENTIDOS

 

Vamos pensar um pouco sobre sinestesia.

Todo sentido é sinestésico. A própria dobra do pensamento é essa: reunir em um único golpe sensações provenientes de sistemas distintos. Lembremos, são cinco: olfato, audição, paladar, visão e tato. Há sempre inflexões, sempre cedemos a cada vez mais para um dos lados do pentagono – do pentagrama? –, no entanto, lá estão sempre todos reunidos na formação do significado, aquilo que “faz sentido”.

O princípio que os reuniria é: serem todos passivos. Mas nos permitamos isolar dois deles e perguntar pelo seus órgãos: o paladar e o tato, a língua e a mão. Provisoriamente, apenas, aceitemos considerar o paladar passivo. A língua se engaja em outras duas atividades que seriam, então, propriamente ativas: o beijo e a fala. É com ela que o sentido do tato, por sua vez, encontra seu órgão da mão – dotado também de especial pendor comunicativo – sempre em particular cooperação. Não se come nem se cozinha sem usar as mãos, não se fala, não se lê, não se escreve sem as mãos; e, por favor, não venha me beijar sem pegar no meu pescoço.

Antes de Aristóteles ter estabelecido as bases para a nossa teoria com cinco, um filósofo atomista defendia a proeminência do tato como único verdadeiro sentido. Para Demócrito, todo o resto é também decorrência de um toque físico.

Isso é bonito. Mas não esqueçamos que a mão que toca e a língua que masca procuram seu objeto – como o fazem os olhos, o nariz, os ouvidos –, mas também dão novos objetos à luz, dividem-nos com o grupo. A mão e a língua criam para fora da ficção do indivíduo. Independentemente da revisão fenomenológica e a autoria criativa que se queira imputar aos olhos e aos ouvidos, sem a mobilização de outros órgãos, esses não poderiam se engajar em atividades comunicativas. Sim, que os olhos sejam tão dotados de ação quanto quiserem, a linguagem não existirá jamais se essa criação não for partilhada de uma pessoa a outras – por meio das mãos, por meio das bocas.

Criança, meu primeiro vício foi chupar o dedo. Não nos esqueçamos da solidariedade poética entre a língua e a mão. Pelo menos por enquanto, não¹.

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¹ Em uma discussão, um idiota mandou duas mensagens a um menino que pretendia cabular aula: "você está sendo um idiota" e "no sentido grego da polis". Gostaria de acrescentar — a "solidariedade poética" — "no sentido grego da poiesis". Mas gostaria que não me considerassem por isso um idiota, no sentido brasileiro da idiotice.

NOTA SOBRE O TEXTO "A LINGUAGEM DA LÍNGUA"

 

David e Rodrigo me chamaram atenção sobre o papel prismático do paladar. A língua não só beija e fala, ela deglute. O que nos revela, em primeiro lugar, que: as palavras devem ter tanto gosto e textura como comidas e línguas alheias o têm. Em segundo lugar, parte importante do prazer em comer deve ser também uma atividade ativa. Não recebemos passivamente o sabor, mas o criamos, como as outras duas atividades, pelo trabalho da língua.

Se beijar e falar representam para nós distinções da cultura humana, não menos a língua se afasta da natureza quando nos alimenta, porque ela não o faz em nome da subsistência. Slam poetry, ceviche e french kiss são símbolos igualmente dispensáveis e necessários entre si.

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27ª PUBLICAÇÃO DO MÊS DE MARÇO

 

Quando enfim puderem comprovar que os signos não são de todo arbitrários, será importante medir a extensão que designa o som ma. Falo menos do significado também extenso de palavras como mar, mãe ou demais e mais da duração profunda de que se ocupou esse mês de março. E não consigo senão pensar no mês de maio.

Por que se tem raiva do tamanho de maio? Porque se tem pressa. E no entanto é preciso adiar a sua demora. Maio, quando não passa: só então traz suas grandes, largas, dilatadas mudanças, tão verdadeiras. Tão únicas de maio, tão próprias dele, tão somente para os que podem não vê-las: quando o tempo de maio vai junhando no ar de velas e balões rumo ao céu.

Sou levado a crer que têm ma as coisas em que entramos e, ao cabo de um extenso processo, saímos transformados; como o ar vibrando, que, pela boca fechada, sai do nariz até ser finalmente solto na qualidade aberta de um aSou ainda novo, mas, creio, quando puderem comprová-lo já estarei morto.

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A LINGUAGEM DA LÍNGUA

 

A língua é só uma — a que fala, a que beija. Assim não sei o quão se diferem de fato o falar e o beijar. Um bom beijo nos fala assim como em uma boa conversa as línguas se encontram.

Quando beijamos, a língua se lembra do exercício da fala: essa que beija é a mesma que o dia todo com a linguagem trabalha; e por que na articulação da fala deixaria de haver uma lembrança do beijo? Falar é tentar beijar com palavras.

Falar faz sentido. Não preciso nem falar que beijar também faz sentido. Verdadeiramente acredito que qualquer órgão pensa tanto quanto o órgão cerebral. Minha língua pensa: falando, beijando, na sua forma intercomunicativa, particular e prazerosa de pensamento. Na sua linguagem.

Mas então o que tentamos dizer durante um beijo? Nada mais do que já dizemos.

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