Sem os nomes que eu não tive, não se poderia jamais preparar-se o meu nome. Como eu, também ele foi cozinhado na barriga da minha mãe. Mas eu, que não o entendia quando criança, reclamava:
– Mãe, mas por que vocês não me deram um daqueles dois nomes?
Não sei se eram mesmo melhores ou apenas maiores. Se bem que Jorge Miguel – ou Miguel Jorge – brilhavam, sim, compondo ao nome que tinha e tenho, o nome que meu pai quase teve, mas não chegou a ter. Não sei se eram melhores, maiores, ou se eram apenas mais uma coisa destinada ao meu pai que eu também poderia ter tomado para mim, assim como minha mãe, a namorada que eu lhe tomei ao nascer.
Jorge, porque meu pai nascera ao dia 23 de abril de 1972, data em que se celebra o Dia de São Jorge, e minha avó arrependeu-se um pouco de não o ter homenageado. Pois meu pai acabou por ficar com aquilo que já se lhe destinava: o primeiro nome do nome composto do seu pai, Rafael Dirceu, avô que não conheci, mas de quem meu pai guarda portanto um pedaço. E eu, por minha vez, da mesma forma acabei por compartilhar com meu pai um nome, esse que não tivemos. Também eu lhe guardo um pedaço: seu e meu pedaços de Jorge, que não vieram a nascer, mas que se acrescentaram às palavras ouvidas por nós de dentro do útero das nossas mães.
Miguel, essa outra coisa que ali se me destinava; o amor e a miopia de Miguilim, personagem de um dos muitos livros que minha mãe me leu grávida, em voz alta: a novela Campo Geral, cujo autor sabia e forjava mais do que ninguém o quanto nomear era originar, gerar, instaurar, era dar sinais e contar, já, a história de alguém, criá-la. Dizer que um nome é um destino não é curvar-se ao império historicista da etimologia. Um nome, além de remeter a uma morfologia arcaica, remete a uma pessoa, e outra que veio antes dela, assim como o nome Ana da minha mãe remete ao nome da santa que, como minha mãe a mim, ensinou Nossa Senhora a ler. Sob o som da palavra destino tudo vibra: as letras da palavra destino deslocam o sentido da História não só como história de morte, mas como história de vida. Em um destino, o passado não explica o presente. O presente destina o passado, de trás para frente.
Não sou diferente do meu pai e da minha mãe em considerar Campo Geral a história mais bonita que já li, e me emociono se penso nesse menino a quem o direito de uma vida não violenta foi restituído por uma pessoa que vinha de fora, sem ter por que se preocupar a não ser pela própria preocupação de cuidar. Penso no olhar do médico para criança, na criança que ganhou um par a mais de olhos; mas eu – que uso óculos desde os meus três anos –, ao contrário, escolho no meu destino este nome pela sua violência. Miguel é quem enfrenta o diabo e disputa o corpo de Moisés, Miguel é quem é sincretizado como Exu, Miguel é patrono da cavalaria medieval, é o Arcanjo dos exércitos e dos militares.
E então visto meu nome como um nome de guerra, e saio protegido, armado, feito São Miguel, feito São Jorge.
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