RUGIDO DAS FERAS
SUCESSÃO
Tem raiva Chiquita?
que no séc. XXX não vai ter quem decifre?
hermetismo e filosofia?
escritos no nosso próprio cuneiforme?
Vc morre de raiva
Eu entoo minha cantilena
Ninguém me vai ler
Nem ninguém me lê
Ninguém me vai ler
Nem ninguém me lê
Ninguém me vai ler
Ninguém me vai ler
Nem ninguém me lê
Ninguém me lê
Chiquitita no apocalipse
é doce morrer de alegria
. . .
NIVELAMENTO
Certa noite não se puxará ar — para gastá-lo de novo.
Um dia a música metida a deus — acaba como quem arfa o gozo:
no instante posterior à porta batida — às mãos postas sobre o rosto,
instante anterior ao eu te odeio — mas posterior à próstata
quando nos diz te amo — e cala o vazio de nenhum acorde.
A briga eterna não saberia a eterna sobreposição;
nela entrescuto alguns momentos de silêncio,
e, nunca sob tensão, um silêncio
igual a todo silêncio
!
O AMOR VIVIDO PELA ATRIZ
É óbvio que para Maria Bethânia
26.1.2022
Naquela atriz a mão no ar
depara o gesto com o gesto
e depura o resto;
fica com a matéria
nosso registro único,
o falso.
Só no teatro
quem vê aquela atriz
distingue da falsidade seus tipos,
aceita:
depois daquilo tudo quer ser
se bem que não tão bem
traçado no palco.
. . .
PROJETO DE TEXTO
no primeiro andar, amores...
No segundo, só dores...
No terceiro, uma escada rolante que passasse pelo primeiro,
daí voltasse pelo segundo através duma sala toda espelhada,
de pé direito alto,
pé direito tão alto que poderia alcançar
um espaço integrado à Rua Marquês de Sapucá
por onde se fará entrar, caso queiram,
diretamente em nosso terceiro andar:
de conceito aberto,
encanação exposta
e piso industrial...
No quarto, ah que lindo,
um terraço: flores...
. . .
ilustração pelo Antonio Yudi
O
Mijaram ali um ano atrás.
Há dois dias mijaram
bem ali. No mesmo ponto
estão mijando agora.
As folhinhas continuam dispostas
uma trançando outra
em torno da extinta poça seca.
Sabem, sinto que guardam,
a memória do mijo
ou pelo menos sofrem
a memória do mijo.
Aquilo nem chega a ser
memória, se chegou
já foi e é só
agora
decorrência de tudo
murmurando claro:
estive aqui
vocês não sabem.
Essa é a pior das vinganças…
Aquilo não é esquecimento.
Está tudo dentro.
Nem se perdeu: não há mapa.
Não é cicatriz
se não conta da queda.
Aquilo é
na recorrência do nada que ia,
do nada que já é um dia
e sinto que segue
produzindo mijinho:
farfalho de folha
pra traçar o caminho.
. . .
JUSTIÇA SOCIAL
Aquela publicitária é uma poeta
aceito
aquela publicitária é uma poeta
Que fazer? é uma poeta
dizendo assim
um UBER-Flash leva
de casacos de ex a cartas de amor
A serviço do capital se fez poesia
Contra os críticos poesia
Contra mim poesia
Ela fez intransigentemente poesia
Não tinha esse direito
Não queríamos que o tivesse
Mas o arrancou com seus dentes esmaltados
com esmalte de sua faculdade de Propaganda e Marketing
Ela nasceu faz uns anos
Mais o menos os mesmos suponho
que aquele publicitário
que fez aquele vídeo
que tinha a boa cantora cantando
Chega de Saudade
e me tocou
Torço pro casamento dos dois
Então
eu os atropelarei em um Uber
e com o rádio tocando Chega de Saudade
triunfarei sobre a carne vendida deles
Eu caríssimo muito mais
sempre eterno justamente
poeta
. . .
MANUAL
O livre define-se em relação a-
O livro também mas isso se oculta
e entre os dois
pesa mais que dois milênios
de tradição e etimologia
O papel do livro quer seja livre
é o de primeiro a carbonizar
Tão logo mantêm uma vogal
franceses alternam na consoante
e dizem les livres sont pas libres
Nunca se confundem
No castelhano são qualquer coisa
entre o sistema nosso e o deles
Uma questão geográfica
também uma questão didática
por que se explique aos falantes
que ler não é fácil não lendo
não se viaja
e a escritura se impõe
sim contra os outros sentidos
Não nem vem
não
ler sangra
sim
Ler é mais que liberdade
Ninguém transcende por literatortura
. . .
DEDICATÓRIA (feita a 20 de outubro por sensação de urgência)
Novo Acordo Ortográfico, eu o dedico aos outros. Glorificação, para ninguém. Sei lá, para os americanos. Eu já dedicara para Clara Uma imagonia, e assim é. Decisão sobre os Anolis envio ao meu professor Fabio de Souza Andrade, sem que ele o saiba: por reconhecimento. Isso eu repito com eu mundo. Guia, pra quem criou a Netflix, deve ser Mark Zukenberg. Gestuário é para mim, que também sou gente e também mereço. intervenção nem precisa repetir. Balanço nasceu para Marina e assim, igualmente, o é. Translação, não digo; meu Deus, quanta violência. Sobre Fósseis de Ciborgue, só pode: Gal Costa. Nuinha. Engenho: André Pagani. receita de guardanapo vá mesmo o "Filipinho", e, nem se me torturar, não revelo o nome. retratelepatético é óbvio demais para quem. Bossinha fica sendo para o Chico, porque o quis dedicar para ******** e Chico não deixou. horror de nem, prum rato? Quem sabe. O Espólio de Fulvia Guzzanti, para ela mesma — e nem existe, coitada. (Ao momento da revisão esse poema já não existe mais. Risada maligna. Todo texto tem mil camadas; no jardim de minha avó há doze flores). Ai que se começo algo sério vou trapaceando, não dá jeito. Há outra forma? (E vou percebendo que tantos destes poemas couberam à — justa medida da lata eletrônica de lixo). Termino logo: Clara desgostou de Ritmo da Partida, mas dedico esse outro a ela, se sou eu quem decido; igreja dedico ao Totô. Aí, sim, coitado: ficou com o pior. Era preciso de eu testamentar tudo antes que a estante sob a qual durmo desabe em mim. Acabo de perceber que não dediquei nada para minha mãe. Tirem então o do rato do rato, o deem para ela. É tudo sempre para ela. Fim.
. . .
NOVO ACORDO ORTOGRÁFICO
Ela que eu não enrabava rabiscando na lousa
o português acentua até as três últimas sílabas
Ela coró zíssima e eu pensava
você me enraba?
porque veja eu não sou veado nem deixo de selo
mas quem vepensa
Vepensando assim eu assumia por necessidade
que só mentexistem ós abertos em sílabas tônicas
que os verbos atraem pra si toda sorte de quase palavra
que se absoluta
mentefez preciso repensar umas distâncias
Eles atraindo tudo assim
como quem vepensa
atraem a visão a mente
os sentidos eles atraindo
eles nos atraindo
os princípios dos verbos
Pelo que eu também vepensava e queria
velo assim sendo enamorada
. . .
GLORIFICAÇÃO (2021)
T. S. Eliot
nasceste em Missouri
morreste à Inglaterra
Tua carne nasceu fresca
e boa e morre velha
et cetera e etc
Goza. Viva o Shopping West
Plasma o arrasar desta era
Glosa. Pronuncies prenúncios
com teu sotaque americano
diz burning burning
burning incrédulo
crente bem como vos descrevestes
nos compêndios da academia
Certos de que o mundo convosco começa
e convosco se encerra
Não
as últimas cigarras do cerrado
terminarão de queimar depois
de cantar muito depois
que estiverdes sob a terra
. . .
UMA IMAGONIA
ela, por si só, ela
suscita, que ela
complica, quando escrevo e
sentado sobre essa sensação
de escrevê-la
(um instante fura a ima
(mais que estar fora-dentro
ficar dentro-dentro,
dois corpos no mesmo espaço
traindo o espiritual e o físico
o imã
ele, por si só, ele
aproxima, que ele
destina, quando sinto e
criado nessa inscrição
de sentí-lo
) imagina só: imagina)
penetrar não era força de expressão
— era magnético; a página
— magnética; o mundo
representaria magnetizado
mais que um instante de impressão
e isso, enquanto se anunciava,
gonia
. . .
DECISÃO SOBRE OS ANOLIS
Chovia na Martinica
— chovia no poema
e isso não era expressão de qualquer estado do poeta.
Chovia; e tanto.
Era impossível da crítica negar a chuva.
Mas charcos tomaram a Martinica,
e isso desdenhou sobretudo o poeta.
O curioso do poema
foi que a camaleoa, a contemplar o dilúvio
intuindo seu iminente fim caribenho,
não guardava qualquer relação
com a crítica, com o lagarto
ou com a leoa
(e nem por isso deixa de ser bonito imaginar uma
assim, deitada).
. . .
eu mundo
ausência de choque Confusão das categorias-mundo
entre ele e o mundo: indiferença da cisão-mundo,
O poema, diagnosticado dumenou poeminha, dominou
ausência de choque e saiu pela porta do fundo
. . .
O DETORNO*
* prosa de circustância para Daniela Leite a Conselheira Amorosa
Ai, dor... quero a cenografia do acaso sobre a tragédia escrita; a chave insolúvel-dissolúvel para o diletantismo; a comédia homérica perdida (não a Penélope de urdidura a ódio-de-si em vigília por Odisseu); perder esquecer esquecer esquecer e dar — como eu dava — pra todos pretendentes: ai, prazer... sempre difícil distinguir.
. . .
O SONO DA RAZÃO
Nesse verso oculto
prescrevi a Rede Globo
pra quem sabe um dia
conceber nomes
que soam remédios
como a comunhão
de novelas globais
. . .
GESTUÁRIO
Subiram com balões.
Surgiram com drones de alcance
mais alto, ao maior mar,
menos com a não mais precisa
mas necessária
máquina de aprofundar ao como se dá
o descanso dos siris:
se, na morada em que se escondem,
trocam afetos,
se é fria (aproximam), se é escura
— se sentiríamos ali a mesma
melancolia devida ao mar
que sentimos por cima da areia,
obrigados a escutá-lo
sem afinação.
Nunca um siri retorna pelo mesmo buraco em que entrou fugindo de nós
ela diz,
e nem vemos se por outro qualquer.
Acha que a areia é a quitina
triturada pelos pés;
e não sossega na canga
diante de uma demolição
como essa.
Não adiantam retroescavadeiras.
Arrancado todo o conteúdo da orla
os pegaríamos de surpresa,
desmantelaríamos a forma,
para ficar com uns dois
três inválidos sem escapar:
sem reter seu segredo.
Então com a voz marejada
ressurgem, eu sinto, já por debaixo d'água
e eu lamento
pelo egoísmo
pela teimosia pela inconsciência
e detesto o som permanente.
2.
3.
Sentir uma bolacha do mar com a ponta do pé,
perdê-la. Sentir outra no mar com a ponta do pé,
capturá-la. Examiná-la.
O seu peso na mão perguntar, pela gente,
pelo que fazer
(...)
o arremesso é exagerado;
a mira,
distante; e a despedida,
assim como toda despedida,
. . .
ilustração pelo Antonio Yudi
INTERVENÇÃO
para USP Brema Dafa Vela
Como tocássemos um hit
clássico, quedávamos quietos,
quedos, crespos: Queve-
-do caía; e caiamos:
passamos a caçar-nos
(se os caçássemos
e tocássemos clássicos
que hemos de compor).
Ah mas velho amigo Brema
penso em vc também.
. . .
BALANÇO

Era nas mais menores horas de amor, pendendo ao desencontro do momento, em que decretávamos estado absoluto de absurdo sobre um banco suspenso, e nos minutos, nos segundos prolongando-se a conduzir um pêndulo contra o mesmo vento, à espera do dia em que a energia desorganiza-se e o corpo, perdido, enfim, encosta — em todo o resto, nós — em cada enlace de cipós seculares a lembrá-los da separação que é inevitável e desconhecida, como aquele outro toque moldando-se para o passado: recriávamos termos querido entender tanto, o tanto carente de se inventar deixado por nem existir e a admitir sua limitação biográfica, biológica, pela vida ser pouca; se fosse muita, ainda haveria o que descobrir, senão no namoro, no absurdo em um banco, enquanto, penso ou suspenso sobre a aproximação em que hora, perguntava tempo, por que conta?
. . .
TRANSLAÇÃO
"Disco ainda cedo — mãe, é tão cedo —, porque tive um sonho premonitório. Caía e mergulhava raso no concreto fundo. Como quando a vida nos cresce de dentro para fora, tão inevitável e insuportável, ela revelou-se, de fora, no instante em que despertei. Parece que foi de agora — na notícia — a morte do menino com a cabeça molhada no concreto seco da calçada, da nossa casa, mãe: da nossa casa. Vazante assim do altíssimo andar em que se encontrava. Não, o sonho era consciente demais. Apenas no real fora do sonho cruzamos com a traição que pode ser inconsciente. Lembramos histórias, mas nos esquecemos, em um meio tempo de vida, do nascimento do mundo e que, desde um instante, se enxerta às coisas algumas palavras."
"Miguel — filho —, foi de repente na história do mundo que elas chegaram. As palavras surgiram numa caixa vazia e adesivada Sedex, de amarelo luzente linda a inscrição. Coagida por alguma intuição a assinar seu nome e confirmar o despachante, porque os patrões são de antes do mundo existir, a pessoa que a recebeu logo foi-se percebendo e percebendo o brilhante nas letras, se indignando com o estrangeirismo em Sedex e resolvendo com os seus que era melhor ser nacionalista para proteger a insipiente língua de descaracterizações. As palavras já eram reais demais, Miguel — filho —, assim um cônsul na região autodeclarou-se assim. Era preciso alguém reconhecer que a narrativa sucedida impediu o desenvolvimento autóctone da linguagem na tribo dos homens."
"Era preciso estar vivo, e eu morri, porque a inconsciência disparou da sacada e agora me faltam palavras: a nossa origem não basta."
Silêncio do outro lado da linha; não se ouvia exceto o choro da mulher. As culturas persistiam realizando todas as suas trocas os seus encantos, as suas transações econômicas e os casamentos. Casavam-se ainda algumas poucas pessoas apesar do sepultamento do amor. Algumas pedras amaram os cantos que cantaram as pedras, tinha feita em que esses dois casavam-se e encerravam para sempre o seu porvir em acordo. Havia ainda outras sortes de casamento e havia também jovens apaixonados que fodiam fudiam e sequer se casavam. Existiam também coisas que não pedras, como pontes, que passavam por debaixo de rios, e os rios todos do planeta entravam em comunhão para o engrandecimento dos mares, e as calotas polares. Aquela porção anímica ignorava tudo isso até o ponto do transbordamento de tudo.
"O Dilúvio, imagina? Mãe, naquele sangue do menino jorrando tudo era possível; assim como são notáveis as partículas que parecem constituir a elementaridade de toda matéria, mas que são impossíveis de serem organizadas retoricamente na explicação de por que vocês, mulheres, vão e se ferem."
. . .