TRANSLAÇÃO


"Disco ainda cedo — mãe, é tão cedo —, porque tive um sonho premonitório. Caía e mergulhava raso no concreto fundo. Como quando a vida nos cresce de dentro para fora, tão inevitável e insuportável, ela revelou-se, de fora, no instante em que despertei. Parece que foi de agora — na notícia — a morte do menino com a cabeça molhada no concreto seco da calçada, da nossa casa, mãe: da nossa casa. Vazante assim do altíssimo andar em que se encontrava. Não, o sonho era consciente demais. Apenas no real fora do sonho cruzamos com a traição que pode ser inconsciente. Lembramos histórias, mas nos esquecemos, em um meio tempo de vida, do nascimento do mundo e que, desde um instante, se enxerta às coisas algumas palavras."

"Miguel — filho —, foi de repente na história do mundo que elas chegaram. As palavras surgiram numa caixa vazia e adesivada Sedex, de amarelo luzente linda a inscrição. Coagida por alguma intuição a assinar seu nome e confirmar o despachante, porque os patrões são de antes do mundo existir, a pessoa que a recebeu logo foi-se percebendo e percebendo o brilhante nas letras, se indignando com o estrangeirismo em Sedex e resolvendo com os seus que era melhor ser nacionalista para proteger a insipiente língua de descaracterizações. As palavras já eram reais demais, Miguel — filho —, assim um cônsul na região autodeclarou-se assim. Era preciso alguém reconhecer que a narrativa sucedida impediu o desenvolvimento autóctone da linguagem na tribo dos homens."

"Era preciso estar vivo, e eu morri, porque a inconsciência disparou da sacada e agora me faltam palavras: a nossa origem não basta."

Silêncio do outro lado da linha; não se ouvia exceto o choro da mulher. As culturas persistiam realizando todas as suas trocas os seus encantos, as suas transações econômicas e os casamentos. Casavam-se ainda algumas poucas pessoas apesar do sepultamento do amor. Algumas pedras amaram os cantos que cantaram as pedras, tinha feita em que esses dois casavam-se e encerravam para sempre o seu porvir em acordo. Havia ainda outras sortes de casamento e havia também jovens apaixonados que fodiam fudiam e sequer se casavam. Existiam também coisas que não pedras, como pontes, que passavam por debaixo de rios, e os rios todos do planeta entravam em comunhão para o engrandecimento dos mares, e as calotas polares. Aquela porção anímica ignorava tudo isso até o ponto do transbordamento de tudo.

"O Dilúvio, imagina? Mãe, naquele sangue do menino jorrando tudo era possível; assim como são notáveis as partículas que parecem constituir a elementaridade de toda matéria, mas que são impossíveis de serem organizadas retoricamente na explicação de por que vocês, mulheres, vão e se ferem."

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