31.12.23
Tire dos seus olhos
esse verde de Louva-Deus
Não me mate
Não me coma
Tira o verde desses ói
de riba d'eu
. . .
31.12.23
Tire dos seus olhos
esse verde de Louva-Deus
Não me mate
Não me coma
Tira o verde desses ói
de riba d'eu
. . .
25.12.23
Virgínia
o que será que ela fará
a uma hora dessas?
Limpeza de pele?
Limpeza das gorduras acumuladas
sob a pele?
Lavagem dos doze automóveis
Lavagem de dinheiro
em mais doze automóveis
Nessa hora corta totalmente os carboidratos
enfim tempos de merda
A verdade sim rima
O problema é que em eras como essas
não há rima de verdade
não há rima possível ou certa
O poema sai assim xoxo
como se feito às pressas
e lhe enxertassem umas peças
Virgínia
musa às avéssas
. . .
4.11.23
Quem via pensava que éramos conhecedores comuns, conjuntos, coincidentes. Isto é o que eu vê-penso: os nossos saberes, o que a gente pensava e sentia, conhecidia.
É preciso amar as pessoas
Feri-las ferinamente também
se é o caso
com direção e endereço
– Marina Dias você é um urubu
*
Espanta teus males embora
Espanca, canta eles agora
e pule e pulse e expulse-os
logo pra fora
*
já falei com vc
vc quer o quê?
querê quero erê u ê
já falei de tudo
sobretudo eu com vc
. . .
Eis que reflui ao metalinguismo poético.
. . .
texto entre o
testamento o
testemunho o
testículo
Um teste
E se ao Deus dizer
faça-se a luz
nada — quem?
não se fizesse
Isso se entende?
Não sei quando me faço entender
. . .
A partir do poema "Nossa poesia não será burguesa ou não será". Publicado aqui com a liberdade que tomei de reescrever uns versos, adicionar maiúsculas e pontos — isto é, de controlar seu texto, porque pelo visto tenho visto que escrita é controle.
O primeiro amor homossexual
do meu primeiro grande leitor
disse da minha poesia
É burguesa
Meu primeiro leitor
disse do meu primeiro amor homossexual
Não é amor
Disse-lhe o mesmo
e talvez os dois estivéssemos certos
Os nossos primeiros amores
por sua vez
dizem sempre É burguesa
sobre a nossa poesia
Mas não
meu primeiro leitor e eu
que o sejamos burgueses
A nossa poesia eu não diria
É apaixonada
e nossos primeiros amores
homossexuais que são
deveriam notá-lo
Meu amor homossexual não quer mais nada com isso
Meu grande leitor cansou de notas biográficas
Seu primeiro amor segue dizendo burguesa
o que quer que seja
e eu amo a todos e lhes quero bem
. . .
1) Nunca há gente demais em uma foda bem fodida.
2) Nunca há tempo o bastante para uma despedida.
3) Ou "tudo o que vai morrer como se fora para dar-se", etc (no lugar de encerrar um texto, como este), e por aí vai.
. . .
O amor pelo próprio pai
quando me diz seu avô era um homem íntegro
O amor por uma mulher como minha mãe
30 anos por enquanto e lá vai pedrada
Ou o escravismo na proposta de Zumbi dos Palmares
Porque meu pai não é um herói
e recusa a maior parte dos heróis nacionais
Mas meu pai fuma charuto
o que lhe dá um quê de heroico
mais seu tom messiânico, como
o pensamento francês busca apenas adiar a sua morte e
é a morte da Escola dos Annales
Ele viaja a pesquisar tráfico de escravos
Em uma dessas viagens
minha irmã disse à minha mãe
era muito pequena ainda
que saudade do corpo do papai
. . .
11.10.23
Junior
te quedas in peace
baby por mucho tiempo
poesia brasileña will still
have its eyes bien cerrados
a todo lo que really maters
Tranquilo
viva a la margen
at a riverbank hurra
write or escribe
o mismo escreve
nobody will read you
é o que importa
. . .
20.9.2023
1) O poema é o que se perde na tradução.
2) O mito é o que fica com a tradução.
3) A viagem é o que não se tinha na primeira versão e vem à luz após a tradução.
4) A viagem, por ser o que se ganha na tradução, só pode ser o contrário do poema.
5) A viagem é a traição do princípio conservador que norteia a tradução.
6) A própria palavra traição parece trair a palavra tradução. Entre as duas o que se passa é uma viagem.
7) Tudo aquilo que se esperava da viagem ainda não é viagem. A viagem é o que não se esperava.
8) A viagem é um fantasma que se projeta ao fim de si mesma. Por isso Clarice Lispector escreve em seu diário "Não sinto mudança de natureza, não sinto viagem!". Não havia ainda chegado ao cabo sua viagem à Libéria. Apenas pode haver viagem com o fim da viagem (e da tradução).
9) A viagem será sempre melancólica. Sua imagem só pode formar-se na partida.
10) A partida da viagem tem esse nome por através dela levarmos conosco uma parte do lugar de onde partimos. Viajar é poder carregar uma parte na partida.
11) Um coração partido teve sua parte roubada. Levamos conosco a parte dos corações que partimos. Como calvários.
12) Ao viajar ama-se outra parte, mas a consumação de sua traição será sempre impossível; amar a viagem é trair o existente em nome do existido: amor que se atualiza, mas só em torno e conforme dado um fim.
. . .
14.9.2023
O "Século de Clarice"
A década negra
O milênio do poké
Também o dia que não coube no poema
O dia que o poema não conheceu
O dia deitado para fora da página
O dia feito em pé contra o verso do poema
Mas mais falido do que fálico
Sem a falácia de um poema
O dia: não
Um dia: meu
. . .
Proposta:
Chamar blogueiro apenas a quem tiver a plataforma blog. A quem se chama atualmente de "blogueira" chamar de "historiadora" (devido ao uso da plataforma storie).
É uma questão tão necessária quanto precisa.
Viabilidade:
Proposta linguística verdadeiramente incorporada à expressividade e ideologia da comunidade falante de portuguesileiro, como o tupi de Policarpo Quaresma e o pronome neutro.
Diríamos que é um sucesso.
Signatários:
Miguel de Bivar Marquese (mediador de leitura, estudante, leitor de poesia, autor de poesia, blogueiro);
Antonio Yudi Pontual de Petrolina Ikeda, o Totô (japonês alto, quase um historiador, pintor de mão cheia, gravurista por ambição, marionetista por ora, sem dúvidas um baita blogueiro);
"Basta".
. . .
11.9.2023
Houve um tempo — e talvez seja essa a expressão fundamental do trauma, "houve um tempo", como eu diria que somos melancólicos, porque, crianças, escutávamos "era uma vez" — em que uma diferença me aparecia. Viajar era isso: poder conhecer algo que me negasse.
Mas eis que agora viajo e no entanto me carrego. Não o princípio da diferença — eu e outro —, o eu só pode ser o princípio de toda indeferenciação. Eu fala para um outro, mas é eu quem fala e te escuta, pequeno outro. Eu reúno e neutralizo o mundo em meu próprio tecido. Eu escreve um texto, mas eu não me quer. Preciso não lhe querer: eu, que não consigo deixar de ser brasileiro, que não falo nada desse dialeto da língua humana que é o holandês.
E eis que ao responder desta forma recrio meu próprio problema. O eu é o princípio da indiferença porque o eu é humano. O humano é o princípio da indiferença. Sem perder o humano nunca nos livraremos de nós.
Desejo apenas que durante dez dias eu seja holandês e desseja brasileiro do jeito mais terrivelmente desumano, ainda que envolva ****** ** ****** *** ******* **** *****. De forma a não esquecer jamais que ** ***** ***** ** ******* ***** *** **, ***** *** ****** ****** *** ****** ** ******. * ***** ** *** ******* **** *****, ***** *** **** ****** **, ****** *** ******* **** *****.
. . .
29.10.23
I'm sorry, but
I'd rather just follow my lead
as an american poet.
We english spearks don't have this taboo
about prosódia or pés
or anything like that.
We speak softly or even toughly
but uniformely.
There're no oscilations.
Yet in America there're some.
We're not the same.
Our language is not the same.
Don't you hate America
or you can hate it.
Do it either ways knowing what you're hating.
America is not only a white country.
The first american indeed was Americo.
When he first came there
there was plenty indigenous people that still are
here. Living or dead but they do.
Do you feel freed from guilt?
Hate what you want,
I'm not interested.
I'd rather discover myself as a poet
uneasy about prosódia or pés or
genocídio dos jovens negros favelados
or milícia or breja
that I don't drink.
. . .
17.10.23
Após a hora da voz
eis a era da vez
da caligrafia do poeta.
Adeus atores ateus
(sua leitura visceral e chata).
Lutero matou o papa.
Lutero noves fora
exortou os populares dez vezes
basta.
No século 16
ler a Bíblia com os próprios olhos
não escutá-la.
Com as próprias mãos
inscrever o poema nesta página.
*
. . .
9. 10. 2023
Minha mãe é um sopro que tomou minha vida.
Minha mãe me soprou para fora de sua barriga.
Às vezes, minha mãe é como uma brisa.
Minha mãe me oxigena tão logo o romper do dia.
Minha mãe é vento alerta de maresia.
Saudades da minha mãe eu sei que sem conhecê-la a terra tinha
(Da terra minha mãe é o ar que se respira).
Raramente me lembro de ser minha mãe por sua vez uma filha.
Seja o que ela for para mim me basta que é a minha
. . .
8/10/2023
meu boy meu boi meu touro
meu bezerrinho
meu cordeiro de Deus
que me dais os pecados do mundo
me mama
. . .
22/09/2023
Meu tom de pele
calça cáqui
Meu corpo um fruto
do caqui rançoso na boca
que ninguém quer comer
Minha magreza de ruim
Meu rosto bonito contudo
Meu coração peludo
Minha pele de rã sem pelos
A frieza do meu coração
Meus ideais
. . .
Inspirado, editado e roubado por mim, outra vez — quase sempre — do Totô.
Gosto dos que me fazem vibrar — e digo: gosto de conhecer para aprender a vibrar melhor. Gosto da palavra estendida ao comprido de sua graça, porque é graciosa e engraçada. E se me ensinam o alfabeto grego, o cirílico e mil kanjis é sim, sim, senhor, porque me masturbar em 26 letras é pouco e escasso: quero cruzar todas palavras de todos os cantos. É para chorar um amor em versos líricos e mais tarde em ironia cáustica; para saber o sólido geométrico que melhor se encaixa na minha tristeza; para conhecer as etimologias e rir de Pedros, coitados, que são pedra.
Quem ainda quer ler o mundo? Como se houvesse coisa pra ler. Um entre outros mil, tinha-se lido que, há pouco mais de dez anos, o mundo acabaria. Coisa ainda pior na aparente ausência de mitologias: não percebem, recalcada mesmo na certeza objetiva dos fatos, a suposição de uma redenção mal assumida. Empanturram-se de números, esquadrinham-se em gráficos e eixos e, mesmo assim, não enxergam que o percurso de seus pensamento traça uma imensa cruz. Sonham: sair da caverna com um gesto heróico; ver dobrar o espaço, já rendido em apokálypsis; assistir ao revelar da farsa; a caverna desmanchar-se em planos não cartesianos; o tempo desembaraçar-se. E no entretanto não há redenção: o demiurgo não cogitou o fogo e não houve plano por se manifestar na saída da caverna. Andou-se em circulos. Sinos não foram tocados. Não desceram quatro cavaleiros, nem surgiu, dos céus, a tal da puta da Babilônia. Para que então, reter-se, mortificar-se à espera dê? Por que cultivar a redenção oculta no estudo dos algoritmos e funções numéricas? Alguém avise: a máquina do mundo não vai se abrir, o gabinete não será invadido por cachorros falantes e não haverá pacto que resolva. Já se leu tudo. Já se escreveu — a sério — uma Bíblia, e nem assim a redenção chegou. Querem continuar a resmungar objetividade, como quem resmunga a certeza da volta de Cristo? Desenrolem ao infinito o perímetro da circunferência, e andem em círculos científica, precisa, calculada, rigorosamente.
Se não há explosões, não há dragões, pelo menos que nos divirtamos com entrar e sair da caverna. Deixem que se projete todo um teatro nas sombras. Animem-se como as crianças com animais feitos contra a luz pelo contorcionismo das mãos. Usem, pelo amor de Deus, o saber oculto do mundo de lá para projetar deliciosas fodas, e que se foda que sejam sombras. Fiquem aí os disciplinados leitores, os ascéticos cientistas, calculando o valor de zero sobre o nada, à espera do seu Cristo Numérico. Perderão o show das luzes e das sombras.
. . .
aos meus netos direi que aos 20
fazia palíndromos andava em círculos
via vídeos no youtube
aos meus filhos direi que desenhava
lia e chorava
com músicas de amor
. . .
Eu detesto design não é por arrepiar a um estrangeirismo. Ontem, eu aprendi: que o inglês é uma língua franca.
Não é uma questão linguística ou gramatical. Não falo hoje das palavras. Falo das coisas.
É que elas terminam por se encaminhar ao lugar próprio delas. O design, na sua qualidade desenhada de designação, se preocupa com o lugar que jamais será o finalmente ocupado pelas coisas.
E nunca desenhar as coisas, mas desentranhá-las. No mundo, há um vão. Portanto, elas vão.
. . .
Foi nos arrecifes
Foi aos arrebates
Pelos arredores foi
que as ondas quebravam
e no centro delas
era onde eu me encontrava
quando você chegou
na hora mais exata
. . .
Louco, a corrigir traduções
eu velo você,
cuja imagem me põe,
etimológico, louco,
um sopro um vento de Deus revolvendo Todas-as-Águas.
. . .
22/08/2023
O primeiro amor homossexual
do meu primeiro grande leitor
disse que minha poesia é burguesa
— era burguesa:
agora lixo nuclear
será, embora como resíduo
financiado pela burguesia
produtora da droga e da miséria,
elas sobretudo burguesas
segundo o método materialista dialético de análise
mais que o encanto.
Não. Manifesto
a favor do dia em que a graça não se leia
como burguesa,
e se o primeiro amor homossexual permitir
escreveremos encantados e
graciosos mas não burgueses:
encantosos
engraçados
. . .
23/8/2023
A velocidade da luz
também é aquela
com que se cai uma tarde:
lenta.
Repentina,
mas não é rápida
— é lenta.
Assustada,
mas é lenta.
Brusca;
lenta.
O trajeto da luz é veloz,
o seu itinerário não.
Meu dia dura 24 horas
de precisão mais social que científica.
As 24 horas passam lentas
hoje. 24 horas de dor
e de uma luz lenta
que não passa.
Seu trajeto não me é retilíneo.
Mais que um trajeto
a luz tem nos dias pungentes como hoje
um itinerário
lento e de dor
lenta.
. . .
Livrar-se de si não é tarefa fácil, porque estamos sempre muito atentos à possibilidade de nos deixarmos. É impossível deixar-se de uma vez por todas, amputar-se: logo sentimos o golpe violento do corte inicial, nos protejemos, realocados para a parte disponível. Nós migramos pelo medo que temos de expulsar o que é próprio. Por isso é preciso não assustar o eu.
Boa armadilha consistirá num gradual esquecimento de si a ponto que não haja mais o que guardar. Pular na água fria é impedir a exorcização de si, é conjurar-se. Nos perderemos apenas quando conhecermos a arte do lento despojo. Só quando nos despirmos, sem a iminência, sem a emergência de um choque térmico, poderemos, enfim, ficar nus dentro da água. Boiarmos, e adeus terra firme. Sol e sal rumo à verdadeira salvação.
. . .
10/07/2023
Os inocentes do Leblon
gravaram o navio ao entrar.
Trouxe ácido hialurônico.
Trouxe suplemento de açaí.
Trouxe o óleo suave que eles passam nas costas.
Eles te mostram o que você ignora:
onde encontrar a areia mais quente e como ter o óleo suave
que eles passam nas costas. Esquece.
. . .
6/07/2023
Todo mundo me chama de alguma coisa.
Na minha família é Lia.
Uma menina me chamava de Bahia.
O Miguel é meu padrinho,
porque ele me chamou de Iaiá.
. . .
30/06/2023
Soar ou suar é questão de abertura
dos tratos vocais
mas de poros mais que de vogais
de fluidos
Ambos devém o interior em exterior
Comungam
comunicam
Suar e soar é questão de ritmo
e o ritmo é uma questão de corpo
e não cai na roda
quem tem perna bamba
e quem não tem balangandãs
não vai ao Bonfim
. . .
Eu tenho os olhos doidos-doidos
e doídos de doidos por ti.
. . .
24/06/2023
A Igreja de Santa Luzia tem saudades de ver o mar.
Façam um milagre:
tornem-lhe plena do ar do sal.
Ela já está cheia de arder ao sol.
Pensem na capela carioca.
Lembrem que a imagem dela tem sede
de refletir-se na praia que havia lá.
Intercedam pela Santa.
Cuidem dos seus olhos.
Vejam.
Não é tarde.
Não se enganem.
. . .
por Clara Prado
para o proprietário destes meios de expressão
Ninguém me para!
— Ele disse e depois parou.
O menino de ouro cansou
De gostar das mesmas entradas.
Ah, não me levem a mal!
Sapeca pepeca pecar,
Mesmo sujinho consigo brincar
(Brilhar?).
. . .
Há muitos poetas; há
poucos leitores; porque
há, antes, tantos assaltados
e tão poucos assaltantes.
. . .
Ao editor
Tenho poemas.
Sim, tenho.
Tenho também profemas.
Eu tenho.
O sr. quer comprar
bananas?
. . .
Não sei se o romance morreu.
Não quero saber.
Tenho raiva de quem sabe.
Nunca cogitamos velório.
Eu? Não. Viu? Obrigado.
Licença? Claro.
Por favor. Pode passar.
. . .
Alberto veio me procurar algum tempo depois de eu pedir papel e caneta. Eu queria conversar mas não era possível, pois só joga papo fora quem o tem de sobra. Aqui estão as enfermeiras todas muito ocupadas. Elaine era o nome da que primeiro falou comigo e já não sei quem ela é. Gostaria de ter-lhe dito que tenho uma prima chamada Elaine. E que a sedação foi tão boa que sedado o que sinto é muito bom. Ou, talvez: se na verdade é mais uma impressão, e na verdade o bom vem de depois do apagão estar vivo. Mas uma suave vida apagada na seda... de forma que tantos americanos se viciam em morfina. São efeitos parecidos?, não há a quem possa fazer a pergunta. Peço para conversar com as enfermeiras e pelo meu estado devem pensar que minha vontade de conversar é vã como o sedativo — e? Por isso não importa? Como têm mais o que fazer, pelo menos uma mais gentil atendeu ao meu pedido de papel e caneta. Vejo que a escrita é um arremedo da solidão quando espreita o medo. Mas endereçando-a. A mim? Não sei. Medo de quê? Não sei. Sei que ela potencialmente me revela o que agora só com o torpor nas mãos poderia registrar. E se a escrita revela-me, então a quem? Não sei. Ao menos logo chamarão minha mãe. O tempo suficiente para, de pouco em pouco, me desinteressar do por um instante divino suco de maçã; para deixar de — deixei. Mas o doutor (terá doutorado?) parece que sabe como é, segundo umas das enfermeiras; já o chamaram há tempo e não vem. Seu nome: alguma coisa com L, talvez Loreto. Só faço pensar naquela atriz bonita que não é a Camila Pitanga.
. . .
Nem
uma pedra no caminho
Ausência delas
Nenhum cenário
mais remotamente concebido
como iminência possível
de tropeços empecilhos base para barricadas
Ou atirar pedras porra
Não tem pedra no caminho
Caminho sem pedras
sem caminho
aqui não há nada
. . .
Poema com o qual acho que não concordo
mas que talvez agrade o coração do poeta Régis Bonvicino.
Poema retirado do meu comentário digital
Burro! Estronda como um esturro
O alarido estúpido do seu urro...
. . .
POEMAS TERRIVELMENTE LINGUÍSTICOS
O João perguntou quando a Maria vem;
o João perguntou: a Maria vem quando?
. . .
fortes rimas toantes fracas
mortes corpos mortos
jogados em meio à praia
ritmos breves longos idem
mais curtos versóbrios
por assassínios se imprimem
de cinco a sete facadas
alternadas logo
em redondilhas sublimes
. . .
13.4.23
pelo prazer da língua
pelo saber da língua
pelo sabor que a língua me dá
Ou a outros homens
que beijem e falem como você
sem que eu sequer
tenha que provar para dizer
. . .
Está feito. Os troços coisados
em negócios. Muito despojo.
Tudo destroços. Necrotreco
de sentido, e no som
ainda rima interna
com ossos.
. . .
Então aqui vem se acabar
a Rua Cayowaá.
Então é aqui?
Pra mim você era
mais moça. Pra mim
você: era.
Eu te imaginava mais
pomposa e lembrava também
daquele condomínio
na sua primeira quadra
quase dando no metrô,
onde morava a colega de sala.
De repente me lembro
do endereço: 2046; grande,
de crepúsculo e não de aurora.
Nunca pesei que o sol poderia ter nascido
deste outro lado e de caminho cruzado
só então me encontrar.
Nunca cogitei que não trouxesse
eu o sol,
ou que ele nascesse distante
dos meus olhos. Mas ele
se põe. E antes mesmo ele nasce.
E isto aqui é o antes
que eu não via.
Não acaba aqui a Rua Cayowaá.
Agora eu vejo.
Depois de tudo, enfim,
chega a hora do começo.
. . .
O mundo está decididamente encantado.
É a graça. É fugaz: logo passa.
Agora o mundo de plástico me abraça.*
Miguel Bivar Marquese
Esta ampliação da esfera privada, o encantamento, por assim dizer, de todo um povo, não a torna pública, não constitui uma esfera pública, mas, ao contrário, significa apenas que a esfera pública refluiu quase que inteiramente, de modo que, em toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora precisamente porque é irrelevante.
*E isto também é real embora não agrade ao poeta Régis Bonvicino (nota do epigrafista).
. . .
Aquele dia você tombou
tonta, se apoiava
num não vi ao certo —
fazia escuro. Desde aquela noite
em que você,
depois de se levantar,
caiu de novo,
seis anjos me carregam,
sete demônios me dão de comer,
e meu único anjo da guarda
me sentou na única cadeira
como consolo.
Partimos sapatinho de cristal.
Não bastou.
Queimamos brinco de ouro.
Não passou.
Permaneço hoje sentado,
mas oito espíritos da floresta me conduzem,
nove passos à frente, eles vão,
desbastando as árvores,
cuidando para que eu não veja
o vento abater nenhuma folha;
e nunca outra queda
me lembre de que você bebeu de novo.
Desde então, dez vetustas
me jogam na cara sua ordem de vínculo
e pouco nível de compromisso;
onze bailarinas fazem da minha vida
um circo.
. . .
Ninguém disse a mais fina
A palavra se esconde
Já onde?
é o que a gente não atina
Estou tentando descobrir o ritmo
encadeado do meu pensamento
e ele não existe
tenho descoberto
Mas não penso em prosa
isso é certo
. . .
Uma brincadeira: futebol de botão.
Uma dança: dança de salão.
Um livro que não li: Lamentações,
Daniel, Esdras.
Uma conquista: não as tenho.
Uma derrota: Graças a Deus,
poucas tenho. Não estou morto ainda;
se bem que tampouco tentaram-me
matar; se bem que hoje me sinta atento.
Fui um menino atentado,
pelo que me lembram.
Por proteção,
escolho a Oração de S. Miguel Arcanjo,
entre todas (este nome,
recorde de batismo em 2022,
minha mãe me pôs,
duas décadas atrás; e logo
com tanto Miguel
me vejo comungando de tão mais).
De vários jargões religiosos
caros ao léxico da crítica:
me bastam tais versos. Recuso,
obstante, a pecha confessionais.
Como, se a quem?
Qual frei? Cuja paróquia?
. . .