CAROLINA

31.12.23

Tire dos seus olhos

esse verde de Louva-Deus

Não me mate

Não me coma

Tira o verde desses ói

de riba d'eu

. . .

MUSA ÀS AVÉSSAS

25.12.23

Virgínia

o que será que ela fará

a uma hora dessas?

Limpeza de pele?

Limpeza das gorduras acumuladas

sob a pele?

Lavagem dos doze automóveis

Lavagem de dinheiro

em mais doze automóveis

Nessa hora corta totalmente os carboidratos

enfim tempos de merda


A verdade sim rima

O problema é que em eras como essas

não há rima de verdade

não há rima possível ou certa

O poema sai assim xoxo

como se feito às pressas

e lhe enxertassem umas peças


Virgínia

musa às avéssas

. . .

CONHECIDÊNCIA

4.11.23

Quem via pensava que éramos conhecedores comuns, conjuntos, coincidentes. Isto é o que eu vê-penso: os nossos saberes, o que a gente pensava e sentia, conhecidia.

Maldito prazer da língua — coletânea de "poemas" sem qualidades


É preciso amar as pessoas

Feri-las ferinamente também

se é o caso

com direção e endereço


– Marina Dias você é um urubu

*


Espanta teus males embora

Espanca, canta eles agora

e pule e pulse e expulse-os

logo pra fora

*

 

já falei com vc

vc quer o quê?

querê quero erê u ê

já falei de tudo

sobretudo eu com vc

. . .

constatação truísta, quiçá tautológica, deveras pernóstica

 

Eis que reflui ao metalinguismo poético.

. . .

MEU POEMA UM

 

texto entre o

testamento o

testemunho o

testículo


Um teste


E se ao Deus dizer

faça-se a luz

nada — quem?

não se fizesse


Isso se entende?

Não sei quando me faço entender

. . .

MAIS UMA QUADRILHA

por Clara Prado

A partir do poema "Nossa poesia não será burguesa ou não será". Publicado aqui com a liberdade que tomei de reescrever uns versos, adicionar maiúsculas e pontos — isto é, de controlar seu texto, porque pelo visto tenho visto que escrita é controle.


O primeiro amor homossexual 

do meu primeiro grande leitor

disse da minha poesia

É burguesa


Meu primeiro leitor

disse do meu primeiro amor homossexual

Não é amor


Disse-lhe o mesmo

e talvez os dois estivéssemos certos


Os nossos primeiros amores

por sua vez

dizem sempre É burguesa

sobre a nossa poesia


Mas não

meu primeiro leitor e eu

que o sejamos burgueses

A nossa poesia eu não diria


É apaixonada

e nossos primeiros amores

homossexuais que são

deveriam notá-lo


Meu amor homossexual não quer mais nada com isso

Meu grande leitor cansou de notas biográficas

Seu primeiro amor segue dizendo burguesa

o que quer que seja

e eu amo a todos e lhes quero bem

. . .

TEORIA POLIGÂMICA DA VIAGEM

14.12.10

1) Nunca há gente demais em uma foda bem fodida.

2) Nunca há tempo o bastante para uma despedida.

3) Ou "tudo o que vai morrer como se fora para dar-se", etc (no lugar de encerrar um texto, como este), e por aí vai.

. . .

DO MEU PAI ALGUMAS LIÇÕES

16.10.23
para J.C.

O amor pelo próprio pai

quando me diz seu avô era um homem íntegro

O amor por uma mulher como minha mãe

30 anos por enquanto e lá vai pedrada

Ou o escravismo na proposta de Zumbi dos Palmares


Porque meu pai não é um herói

e recusa a maior parte dos heróis nacionais

Mas meu pai fuma charuto

o que lhe dá um quê de heroico

mais seu tom messiânico, como

o pensamento francês busca apenas adiar a sua morte e

é a morte da Escola dos Annales


Ele viaja a pesquisar tráfico de escravos

Em uma dessas viagens

minha irmã disse à minha mãe

era muito pequena ainda

que saudade do corpo do papai

. . .

A LA MATERIA ALL MATTERS

11.10.23


Junior

te quedas in peace

baby por mucho tiempo

poesia brasileña will still

have its eyes bien cerrados

a todo lo que really maters


Tranquilo

viva a la margen

at a riverbank hurra

write or escribe

o mismo escreve

nobody will read you

é o que importa

. . .

TEORIA MONOGÂMICA DA VIAGEM

20.9.2023

1) O poema é o que se perde na tradução.

2) O mito é o que fica com a tradução.

3) A viagem é o que não se tinha na primeira versão e vem à luz após a tradução.

4) A viagem, por ser o que se ganha na tradução, só pode ser o contrário do poema.

5) A viagem é a traição do princípio conservador que norteia a tradução.

6) A própria palavra traição parece trair a palavra tradução. Entre as duas o que se passa é uma viagem.

7) Tudo aquilo que se esperava da viagem ainda não é viagem. A viagem é o que não se esperava.

8) A viagem é um fantasma que se projeta ao fim de si mesma. Por isso Clarice Lispector escreve em seu diário "Não sinto mudança de natureza, não sinto viagem!". Não havia ainda chegado ao cabo sua viagem à Libéria. Apenas pode haver viagem com o fim da viagem (e da tradução).

9) A viagem será sempre melancólica. Sua imagem só pode formar-se na partida.

10) A partida da viagem tem esse nome por através dela levarmos conosco uma parte do lugar de onde partimos. Viajar é poder carregar uma parte na partida.

11) Um coração partido teve sua parte roubada. Levamos conosco a parte dos corações que partimos. Como calvários.

12) Ao viajar ama-se outra parte, mas a consumação de sua traição será sempre impossível; amar a viagem é trair o existente em nome do existido: amor que se atualiza, mas só em torno e conforme dado um fim.

. . .

ANTOLÓGICO

14.9.2023 

O "Século de Clarice"

A década negra

O milênio do poké


Também o dia que não coube no poema

O dia que o poema não conheceu


O dia deitado para fora da página

O dia feito em pé contra o verso do poema

Mas mais falido do que fálico

Sem a falácia de um poema


O dia: não

Um dia: meu

. . .

MANIFESTO DOS BLOGUEIROS CONTRA O USO INDEVIDO DO NOME "BLOGUEIRA"

 

Proposta:

Chamar blogueiro apenas a quem tiver a plataforma blog. A quem se chama atualmente de "blogueira" chamar de "historiadora" (devido ao uso da plataforma storie).

É uma questão tão necessária quanto precisa.


Viabilidade:

Proposta linguística verdadeiramente incorporada à expressividade e ideologia da comunidade falante de portuguesileiro, como o tupi de Policarpo Quaresma e o pronome neutro.

Diríamos que é um sucesso.


Signatários:

Miguel de Bivar Marquese (mediador de leitura, estudante, leitor de poesia, autor de poesia, blogueiro);

Antonio Yudi Pontual de Petrolina Ikeda, o Totô (japonês alto, quase um historiador, pintor de mão cheia, gravurista por ambição, marionetista por ora, sem dúvidas um baita blogueiro);

"Basta".

. . .

11.9.2023

Houve um tempo — e talvez seja essa a expressão fundamental do trauma, "houve um tempo", como eu diria que somos melancólicos, porque, crianças, escutávamos "era uma vez" — em que uma diferença me aparecia. Viajar era isso: poder conhecer algo que me negasse.

Mas eis que agora viajo e no entanto me carrego. Não o princípio da diferença — eu e outro —, o eu só pode ser o princípio de toda indeferenciação. Eu fala para um outro, mas é eu quem fala e te escuta, pequeno outro. Eu reúno e neutralizo o mundo em meu próprio tecido. Eu escreve um texto, mas eu não me quer. Preciso não lhe querer: eu, que não consigo deixar de ser brasileiro, que não falo nada desse dialeto da língua humana que é o holandês.

E eis que ao responder desta forma recrio meu próprio problema. O eu é o princípio da indiferença porque o eu é humano. O humano é o princípio da indiferença. Sem perder o humano nunca nos livraremos de nós.

Desejo apenas que durante dez dias eu seja holandês e desseja brasileiro do jeito mais terrivelmente desumano, ainda que envolva ****** ** ****** *** ******* **** *****. De forma a não esquecer jamais que ** ***** ***** ** ******* ***** *** **, ***** *** ****** ****** *** ****** ** ******. * ***** ** *** ******* **** *****, ***** *** **** ****** **, ****** *** ******* **** *****.

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I HAD ALSO BEEN AMERICAN

29.10.23

I'm sorry, but

I'd rather just follow my lead

as an american poet.

We english spearks don't have this taboo

about prosódia or pés

or anything like that.

We speak softly or even toughly

but uniformely.

There're no oscilations.

Yet in America there're some.

We're not the same.

Our language is not the same.

Don't you hate America

or you can hate it.

Do it either ways knowing what you're hating.

America is not only a white country.

The first american indeed was Americo.

When he first came there

there was plenty indigenous people that still are

here. Living or dead but they do.

Do you feel freed from guilt?

Hate what you want,

I'm not interested.

I'd rather discover myself as a poet

uneasy about prosódia or pés or

genocídio dos jovens negros favelados

or milícia or breja

that I don't drink.

. . .

NÃO SENÃO FILOLOGIA

17.10.23

Após a hora da voz

eis a era da vez

da caligrafia do poeta.


Adeus atores ateus

(sua leitura visceral e chata).

Lutero matou o papa.

Lutero noves fora

exortou os populares dez vezes

basta.


No século 16

ler a Bíblia com os próprios olhos

não escutá-la.

Com as próprias mãos

inscrever o poema nesta página.


*





. . .

PARA MIM É UM RESPIRO E AOS OUTROS ENSINA TÉCNICAS DE RESPIRAÇÃO

9. 10. 2023

Minha mãe é um sopro que tomou minha vida.

Minha mãe me soprou para fora de sua barriga.

Às vezes, minha mãe é como uma brisa.

Minha mãe me oxigena tão logo o romper do dia.

Minha mãe é vento alerta de maresia.

Saudades da minha mãe eu sei que sem conhecê-la a terra tinha

(Da terra minha mãe é o ar que se respira).

Raramente me lembro de ser minha mãe por sua vez uma filha.

Seja o que ela for para mim me basta que é a minha

. . .

MEU BOY

8/10/2023

meu boy meu boi meu touro

meu bezerrinho

meu cordeiro de Deus

que me dais os pecados do mundo

me mama

. . .

CARTOGRAFIA DO HEMISFÉRIO-FÊMEA

22/09/2023

Meu tom de pele

calça cáqui

Meu corpo um fruto

do caqui rançoso na boca

que ninguém quer comer

Minha magreza de ruim

Meu rosto bonito contudo

Meu coração peludo

Minha pele de rã sem pelos

A frieza do meu coração

Meus ideais

. . .

IRREMEDIÁVEL NEON

Inspirado, editado e roubado por mim, outra vez — quase sempre — do Totô.


Gosto dos que me fazem vibrar — e digo: gosto de conhecer para aprender a vibrar melhor. Gosto da palavra estendida ao comprido de sua graça, porque é graciosa e engraçada. E se me ensinam o alfabeto grego, o cirílico e mil kanjis é sim, sim, senhor, porque me masturbar em 26 letras é pouco e escasso: quero cruzar todas palavras de todos os cantos. É para chorar um amor em versos líricos e mais tarde em ironia cáustica; para saber o sólido geométrico que melhor se encaixa na minha tristeza; para conhecer as etimologias e rir de Pedros, coitados, que são pedra.

Quem ainda quer ler o mundo? Como se houvesse coisa pra ler. Um entre outros mil, tinha-se lido que, há pouco mais de dez anos, o mundo acabaria. Coisa ainda pior na aparente ausência de mitologias: não percebem, recalcada mesmo na certeza objetiva dos fatos, a suposição de uma redenção mal assumida. Empanturram-se de números, esquadrinham-se em gráficos e eixos e, mesmo assim, não enxergam que o percurso de seus pensamento traça uma imensa cruz. Sonham: sair da caverna com um gesto heróico; ver dobrar o espaço, já rendido em apokálypsis; assistir ao revelar da farsa; a caverna desmanchar-se em planos não cartesianos; o tempo desembaraçar-se. E no entretanto não há redenção: o demiurgo não cogitou o fogo e não houve plano por se manifestar na saída da caverna. Andou-se em circulos. Sinos não foram tocados. Não desceram quatro cavaleiros, nem surgiu, dos céus, a tal da puta da Babilônia. Para que então, reter-se, mortificar-se à espera dê? Por que cultivar a redenção oculta no estudo dos algoritmos e funções numéricas? Alguém avise: a máquina do mundo não vai se abrir, o gabinete não será invadido por cachorros falantes e não haverá pacto que resolva. Já se leu tudo. Já se escreveu — a sério — uma Bíblia, e nem assim a redenção chegou. Querem continuar a resmungar objetividade, como quem resmunga a certeza da volta de Cristo? Desenrolem ao infinito o perímetro da circunferência, e andem em círculos científica, precisa, calculada, rigorosamente. 

Se não há explosões, não há dragões, pelo menos que nos divirtamos com entrar e sair da caverna. Deixem que se projete todo um teatro nas sombras. Animem-se como as crianças com animais feitos contra a luz pelo contorcionismo das mãos. Usem, pelo amor de Deus, o saber oculto do mundo de lá para projetar deliciosas fodas, e que se foda que sejam sombras. Fiquem aí os disciplinados leitores, os ascéticos cientistas, calculando o valor de zero sobre o nada, à espera do seu Cristo Numérico. Perderão o show das luzes e das sombras.

. . .

A PARTIR DE POST DO TOTÔ


aos meus netos direi que aos 20

fazia palíndromos andava em círculos

via vídeos no youtube


aos meus filhos direi que desenhava

lia e chorava

com músicas de amor

. . .

TRANSIGN OR INTRASIGN


Eu detesto design não é por arrepiar a um estrangeirismo. Ontem, eu aprendi: que o inglês é uma língua franca.

Não é uma questão linguística ou gramatical. Não falo hoje das palavras. Falo das coisas.

É que elas terminam por se encaminhar ao lugar próprio delas. O design, na sua qualidade desenhada de designação, se preocupa com o lugar que jamais será o finalmente ocupado pelas coisas.

E nunca desenhar as coisas, mas desentranhá-las. No mundo, há um vão. Portanto, elas vão.

. . .

PARTIDO EM DUAS PARTES


Foi nos arrecifes

Foi aos arrebates

Pelos arredores foi

que as ondas quebravam


e no centro delas

era onde eu me encontrava

quando você chegou

na hora mais exata

. . .

TERESA


Louco, a corrigir traduções

eu velo você,

cuja imagem me põe,

etimológico, louco,

um sopro um vento de Deus revolvendo Todas-as-Águas.

. . .

NOSSA POESIA NÃO SERÁ BURGUESA OU NÃO SERÁ

 22/08/2023

O primeiro amor homossexual

do meu primeiro grande leitor

disse que minha poesia é burguesa


 era burguesa:

agora lixo nuclear

será, embora como resíduo

financiado pela burguesia

produtora da droga e da miséria,

elas sobretudo burguesas

segundo o método materialista dialético de análise

mais que o encanto.


Não. Manifesto

a favor do dia em que a graça não se leia

como burguesa,

e se o primeiro amor homossexual permitir

escreveremos encantados e

graciosos mas não burgueses:

encantosos

engraçados

. . .

PARA UMA BREVE HISTÓRIA DA LUZ

23/8/2023 

A velocidade da luz

também é aquela

com que se cai uma tarde:

lenta.


Repentina,

mas não é rápida

— é lenta.

Assustada,

mas é lenta.

Brusca;

lenta.


O trajeto da luz é veloz,

o seu itinerário não.


Meu dia dura 24 horas

de precisão mais social que científica.

As 24 horas passam lentas

hoje. 24 horas de dor

e de uma luz lenta

que não passa.


Seu trajeto não me é retilíneo.

Mais que um trajeto

a luz tem nos dias pungentes como hoje

um itinerário

lento e de dor

lenta.

. . .

ALTO MAR

 

Livrar-se de si não é tarefa fácil, porque estamos sempre muito atentos à possibilidade de nos deixarmos. É impossível deixar-se de uma vez por todas, amputar-se: logo sentimos o golpe violento do corte inicial, nos protejemos, realocados para a parte disponível. Nós migramos pelo medo que temos de expulsar o que é próprio. Por isso é preciso não assustar o eu.

Boa armadilha consistirá num gradual esquecimento de si a ponto que não haja mais o que guardar. Pular na água fria é impedir a exorcização de si, é conjurar-se. Nos perderemos apenas quando conhecermos a arte do lento despojo. Só quando nos despirmos, sem a iminência, sem a emergência de um choque térmico, poderemos, enfim, ficar nus dentro da água. Boiarmos, e adeus terra firme. Sol e sal rumo à verdadeira salvação.

. . .

VOCÊS NÃO VÃO ACREDITAR

 10/07/2023


Os inocentes do Leblon

gravaram o navio ao entrar.

Trouxe ácido hialurônico.

Trouxe suplemento de açaí.

Trouxe o óleo suave que eles passam nas costas.

Eles te mostram o que você ignora:

onde encontrar a areia mais quente e como ter o óleo suave

que eles passam nas costas. Esquece.

. . .

DISCURSOBREVIVÊNCIA DE MARIA (IAIÁ)

6/07/2023


Todo mundo me chama de alguma coisa.

Na minha família é Lia.

Uma menina me chamava de Bahia.

O Miguel é meu padrinho,

porque ele me chamou de Iaiá.

. . .

SAMBA DIFERENTE

 30/06/2023


Soar ou suar é questão de abertura

dos tratos vocais

mas de poros mais que de vogais

de fluidos


Ambos devém o interior em exterior

Comungam

comunicam


Suar e soar é questão de ritmo

e o ritmo é uma questão de corpo

e não cai na roda

quem tem perna bamba

e quem não tem balangandãs

não vai ao Bonfim

. . .

APELO A CONTRAPELO

24/06/2023

 

A Igreja de Santa Luzia tem saudades de ver o mar.

Façam um milagre:

tornem-lhe plena do ar do sal.

Ela já está cheia de arder ao sol.


Pensem na capela carioca.

Lembrem que a imagem dela tem sede

de refletir-se na praia que havia lá.


Intercedam pela Santa.

Cuidem dos seus olhos.

Vejam.

Não é tarde.

Não se enganem.

. . .

AS SAPEQUICES DO MENINO DOURADO

por Clara Prado

para o proprietário destes meios de expressão


Ninguém me para!

— Ele disse e depois parou.

O menino de ouro cansou

De gostar das mesmas entradas.


Ah, não me levem a mal!

Sapeca pepeca pecar,

Mesmo sujinho consigo brincar

(Brilhar?).

. . .

POEMA RETIRADO DE UM ENSAIO DE PAZ

 

Não a aranha que vejo,

mas essa que digo.

. . .

EXPLICAÇÃO


Há muitos poetas; há

poucos leitores; porque

há, antes, tantos assaltados

e tão poucos assaltantes.

. . .

"YES, I HAVE IT"

Ao editor


Tenho poemas.

Sim, tenho.

Tenho também profemas.

Eu tenho.

O sr. quer comprar

bananas?

. . .

PELO VISTO SIM

 

Não sei se o romance morreu.

Não quero saber.

Tenho raiva de quem sabe.

Nunca cogitamos velório.

Eu? Não. Viu? Obrigado.

Licença? Claro.

Por favor. Pode passar.

. . .

notas ao despertar de endoscopia


Alberto veio me procurar algum tempo depois de eu pedir papel e caneta. Eu queria conversar mas não era possível, pois só joga papo fora quem o tem de sobra. Aqui estão as enfermeiras todas muito ocupadas. Elaine era o nome da que primeiro falou comigo e já não sei quem ela é. Gostaria de ter-lhe dito que tenho uma prima chamada Elaine. E que a sedação foi tão boa que sedado o que sinto é muito bom. Ou, talvez: se na verdade é mais uma impressão, e na verdade o bom vem de depois do apagão estar vivo. Mas uma suave vida apagada na seda... de forma que tantos americanos se viciam em morfina. São efeitos parecidos?, não há a quem possa fazer a pergunta. Peço para conversar com as enfermeiras e pelo meu estado devem pensar que minha vontade de conversar é vã como o sedativo — e? Por isso não importa? Como têm mais o que fazer, pelo menos uma mais gentil atendeu ao meu pedido de papel e caneta. Vejo que a escrita é um arremedo da solidão quando espreita o medo. Mas endereçando-a. A mim? Não sei. Medo de quê? Não sei. Sei que ela potencialmente me revela o que agora só com o torpor nas mãos poderia registrar. E se a escrita revela-me, então a quem? Não sei. Ao menos logo chamarão minha mãe. O tempo suficiente para, de pouco em pouco, me desinteressar do por um instante divino suco de maçã; para deixar de — deixei. Mas o doutor (terá doutorado?) parece que sabe como é, segundo umas das enfermeiras; já o chamaram há tempo e não vem. Seu nome: alguma coisa com L, talvez Loreto. Só faço pensar naquela atriz bonita que não é a Camila Pitanga.

. . .

QUEM TIRA A PRIMEIRA PEDRA?


Nem

uma pedra no caminho

Ausência delas


Nenhum cenário

mais remotamente concebido

como iminência possível

de tropeços empecilhos base para barricadas

Ou atirar pedras porra

Não tem pedra no caminho


Caminho sem pedras

sem caminho

aqui não há nada

. . .

Poema com o qual acho que não concordo
mas que talvez agrade o coração do poeta Régis Bonvicino.

RESPOSTA CORDIAL AO PINTOR ANTONIO YUDI

Poema retirado do meu comentário digital


Burro! Estronda como um esturro

O alarido estúpido do seu urro...

. . .

LINGUISMOS TERRIVELMENTE POÉTICOS

POEMAS TERRIVELMENTE LINGUÍSTICOS


O João perguntou quando a Maria vem;

o João perguntou: a Maria vem quando?

. . .

São Miguel à frente para me defender;

São Miguel atrás para me proteger;

São Miguel à direita e à esquerda para me acompanhar;

São Miguel acima para me iluminar;

São Miguel abaixo para me sustentar;

É como se eu tivesse

Toda a força de uma prece a me rodear.

. . .

DE TERCEIRO GRAU


fortes rimas toantes fracas

mortes corpos mortos

jogados em meio à praia


ritmos breves longos idem

mais curtos versóbrios

por assassínios se imprimem


de cinco a sete facadas

alternadas logo

em redondilhas sublimes

. . .


Percebi que me iludi com um fato inexistente: o sabor da língua. Ah, isso só se faz a ingrediente. Não há como temperar um frango sem frango. Não sei mais contar histórias, porque você não me trouxe um frango, porque eu nunca criei galinhas.

. . .

em sampaulo

Apreenda depressa a chama arte de realidade.

A MÁRIO DE ANDRADE

13.4.23

pelo prazer da língua

pelo saber da língua

pelo sabor que a língua me dá

Ou a outros homens

que beijem e falem como você

sem que eu sequer

tenha que provar para dizer

. . .

SEGUNDOS LÍRICOS NA VIDA DE UM BILIONÁRIO

 

Está feito. Os troços coisados

em negócios. Muito despojo.

Tudo destroços. Necrotreco

de sentido, e no som

ainda rima interna

com ossos.

. . .

POENTE ANTIGO NO BAR DOS AMIGOS


Então aqui vem se acabar

a Rua Cayowaá.

Então é aqui?

Pra mim você era

mais moça. Pra mim

você: era.

Eu te imaginava mais

pomposa e lembrava também

daquele condomínio

na sua primeira quadra

quase dando no metrô,

onde morava a colega de sala.

De repente me lembro

do endereço: 2046; grande,

de crepúsculo e não de aurora.

Nunca pesei que o sol poderia ter nascido

deste outro lado e de caminho cruzado

só então me encontrar.

Nunca cogitei que não trouxesse

eu o sol,

ou que ele nascesse distante

dos meus olhos. Mas ele

se põe. E antes mesmo ele nasce.

E isto aqui é o antes

que eu não via.

Não acaba aqui a Rua Cayowaá.

Agora eu vejo.

Depois de tudo, enfim,

chega a hora do começo.

. . .

EPÍGRAFE PARA HANNAH ARENDT


O mundo está decididamente encantado.

É a graça. É fugaz: logo passa.

Agora o mundo de plástico me abraça.*

Miguel Bivar Marquese


Esta ampliação da esfera privada, o encantamento, por assim dizer, de todo um povo, não a torna pública, não constitui uma esfera pública, mas, ao contrário, significa apenas que a esfera pública refluiu quase que inteiramente, de modo que, em toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora precisamente porque é irrelevante.


*E isto também é real embora não agrade ao poeta Régis Bonvicino (nota do epigrafista).

. . .

CINCO FATOS QUE VOCÊ NÃO SONHAVA SOBRE O PESADELO


Aquele dia você tombou

tonta, se apoiava

num não vi ao certo —

fazia escuro. Desde aquela noite

em que você,

depois de se levantar,

caiu de novo,

seis anjos me carregam,

sete demônios me dão de comer,

e meu único anjo da guarda

me sentou na única cadeira

como consolo.

Partimos sapatinho de cristal.

Não bastou.

Queimamos brinco de ouro.

Não passou.

Permaneço hoje sentado,

mas oito espíritos da floresta me conduzem,

nove passos à frente, eles vão,

desbastando as árvores,

cuidando para que eu não veja

o vento abater nenhuma folha;

e nunca outra queda

me lembre de que você bebeu de novo.

Desde então, dez vetustas

me jogam na cara sua ordem de vínculo

e pouco nível de compromisso;

onze bailarinas fazem da minha vida

um circo.

. . .

OUTRO PROFEMA


Tanta gente diz feia palavra

Ninguém disse a mais fina

A palavra se esconde

onde?

é o que a gente não atina


Estou tentando descobrir o ritmo

encadeado do meu pensamento

e ele não existe

tenho descoberto

Mas não penso em prosa

isso é certo

. . .

EPÍSTOLA AO SÉC. XXX

 

Uma brincadeira: futebol de botão.

Uma dança: dança de salão.

Um livro que não li: Lamentações,

Daniel, Esdras.

Uma conquista: não as tenho.

Uma derrota: Graças a Deus,

poucas tenho. Não estou morto ainda;

se bem que tampouco tentaram-me

matar; se bem que hoje me sinta atento.

Fui um menino atentado,

pelo que me lembram.

Por proteção,

escolho a Oração de S. Miguel Arcanjo,

entre todas (este nome,

recorde de batismo em 2022,

minha mãe me pôs,

duas décadas atrás; e logo

com tanto Miguel

me vejo comungando de tão mais).

De vários jargões religiosos

caros ao léxico da crítica:

me bastam tais versos. Recuso,

obstante, a pecha confessionais.

Como, se a quem?

Qual frei? Cuja paróquia?

. . .