O dia é
escuro
A noite é
clara
É: o
dia
a
noite
Por isso o dia denso
a noite fina
Como um dia
negro
que só a noite
ilumina
. . .
O dia é
escuro
A noite é
clara
É: o
dia
a
noite
Por isso o dia denso
a noite fina
Como um dia
negro
que só a noite
ilumina
. . .
e pro Henrique
Que seja um eterno discord,
amigo, comigo concorde:
o som de uma call é um acorde.
. . .
Para Auerbach,
a literatura havia acabado.
Para mim —
com o perdão de ter justaposto
Auerbach e mim —,
peço licença:
a literatura acabou
de começar.
Não há mais tempo a perder.
Quando da publicação
do primeiro volume
da busca pelo tempo perdido,
era 70% a taxa de analfabetos
no país em que nasci e vivo.
. . .
Cansei dos descolados.
Tenho preferido os colados,
com calos, e os calados.
"Eu não gosto do bom gosto"
"Estou farto do lirismo comedido"
Vi um vídeo chamado de cringe.
Era uma menina feia
fazendo uma trend.
Não chamariam assim
uma menina bonita
com domínio da técnica:
aparentemente,
consideram aqueles
que se adequam bem à estupidez
mais inteligentes.
. . .
Chá de espinheira-santa
Um pouco de João Gilberto
— pode ser En México
É que o brujo é médico
. . .
Quando a gente
deixa a louça secando
depois de lavá-la,
ela fica com umas espécies
de manchinhas. Tenho tido
a sensação de insetos andando
pelo meu corpo. Tenho
tido brotoejas, acho
que de calor.
Às vezes meu celular para
de tocar música do nada.
A mola da porta
da minha geladeira
está meio gasta.
Ela não fica mais fechada.
. . .
O corpo não é apenas uma fonte de cognição; também ele está submetido a um mapeamento cognitivo. O nosso trato vocal só pode produzir os sons significativos da língua e, assim, organizar o mundo, uma vez que uma organização precedente lhe houver sujeitado — entre dental, labial e tal.
É aprendendo que se ensina. Mas não digo: é adquirindo que se fala. Não há aquisição possível, porque não há triunfo ou conquista.
Esse blog é meu diário investigativo. Pelo próprio princípio que me norteia a investigação tenho de reconhecê-lo.
O princípio: trazer à luz é encontrar uma pista.
. . .
Para Saussure, só tem sentido o que tem contraste. É como se ele dissesse: cresça e aparesça. Ou: quem não é visto não é lembrado. Mas não o imagino entrando num baile vestido de paetê. É como se, jakobsonianamente, eu o imaginasse com uma oposição mínima contrastiva, é como se ele surgisse na festa com um cravo aparecendo de leve para fora do bolso de seu terno, apenas entrevisto — ou entrelembrado? E eu sinto esse cravo opondo-se à falta mesma de um cravo no terno de outros convidados, crescendo.
. . .
Tudo que a escrita controla
a leitura descontrola
Não sei pensei isso agora
como se estivesse fora de moda
contra a letra haver revolta.
. . .
Henrique é um pré-adolescente de 11 anos. Tem aulas particulares comigo há algum tempo. Na aula da semana passada, escreveu um poema. Normativamente corrigi alguns fatos de português junto a ele, e, no mais, o poema está aqui como ele o fez:
Uma menina chegou em uma cidade.
Ela não sabia de nada.
Absolutamente nada.
Nem as coisas mais simples.
Essa menina chegou a um menino.
Ela perguntou: o que é um raio?
O menino respondeu que é um choque
que vem de uma chuva mais forte
chamada de “tempestade”.
Mas ela não sabia nem mesmo o que era chuva.
Era tudo tão estranho...
Ela se permitiu perguntar ao menino:
O que é chuva?
Gentilmente, o menino respondeu:
É um monte de nuvens que começam a soltar água
Do mesmo jeito que você solta lágrimas.
Henrique quis saber por que, quando eu li em voz alta, o poema pareceu ser tão melhor do que antes ele achava.
. . .
O verso não é a vida,
a vida se esconde,
ela está na quebra
de um verso, no verso
de uma página,
nas gavetas, não no livro
mas nas quinas de uma estante,
é o descanso dos olhos,
a cesura, a embocadura,
está no respiro, num suspiro,
ela não é tudo, não é
totalizante: da vida
a vida é apenas um instante.
. . .
Totô, eu ainda acredito que é possível conhecer
alguma coisa.
Não só possível como desejável.
Totô, o meu desejo me desloca
e meu lugar não me basta ainda.
Parte do meu interesse pelas coisas
me ensinou que os estoicos e os cínicos
tinham filosoficamente muito em comum.
Adjetivamente também o tem,
mesmo hoje em dia,
eu acho.
E não admito dizerem que
o pensamento nos afasta da vida real.
Não se o pensamento for vivo.
Não se ele for real.
Não vêm a conhecer outras ideias,
outras pessoas, chamem como quiser,
outras culturas?
Pensando o mundo um xamã faz chover.
Com isso aprendo tão mais sobre
a chuva: chego até a senti-la
diferente sobre o meu corpo.
Nunca foi preciso esquecer do corpo.
É uma questão para mim necessária:
se não pulso creio que estou morto.
. . .
Meu pai me diz
a gente não tem ideia
dos processos evolutivos
pelos quais estamos passando
enquanto humanos
agora neste momento
Eu respondo
a gente não tem ideia
das transformações no português
às quais damos origem
enquanto falamos
agora neste momento
Minha mãe
meninos não briguem
Mas não era uma briga
Minha irmã
a gente não tem ideia
de quando uma conversa
entre o Mimi e o papai
pode-se tornar uma briga
a qualquer momento
. . .
Tu,
Que enches tudo de alegria e juventude
E enxergas vultos numa noite à contraluz
E ouves o canto perfumado do azul,
Foge de mim!
Não te detenhas a olhar
Os ramos mortos do rosal
Que se desmancham sem dar flor,
Olha a paisagem do amor
Que é razão de se sonhar e amar...
Eu,
Que tive armas contra toda a maldade,
Tenho as mãos já tão cansadas de lutar
Que nem consigo te agarrar:
Pobre de mim!
Serei em tua vida o melhor,
Só uma névoa de outrora,
Quando estiver a me esquecer,
Como é melhor o verso agora
Que não se pode reviver...
. . .
Discordo frontalmente de José Miguel Wisnik. Não há o menor interesse em João Gilberto ter apresentado um compósito melódico etc para uma possível definição de Brasil enquanto qualquer substantivo abstrato. Meu Deus do céu e por que diabo falar em Brasil? João é necessário porque encanta nossas serpentes. Não é "civilizar" — oi? — nada, não.
Há quem diga fala em magia como quem lança mão de noções do tipo "mana". A quem o diga eu respondo: o signo excedente, noção mana, é sempre essa ideia enxertada de Brasil.
. . .
Escrevi quase cem poemas
em página de papel
em página de blog
Não há um que preste
Tenho muitos amigos
de carne e osso
Boto minha mão no fogo
por quase todos
. . .
Uma coisa que não faz nenhum sentido: dentre as coisas que li sobre o sentido, a que mais fez sentido estava em um manual de semântica formal feito instrumentalmente para cursos introdutórios de graduação.
A linha teórica – analítica, fregeana – não me agrada nada. Afirma que unicórnio não tem referência e ao escutarmos uma sentença o que buscamos é um critério para chegar ao seu valor de verdade. Mas, porque lá li o significado é o veículo que conecta a expressão com o referente, externo à linguagem, me fez pensar que o sentido é a experiência tida pelo sujeito ao encontrar-se com o mundo. Tanto mais se, por inversão, a ausência de sentido passa a ser o desencontro. De onde, em uma briga, reclamamos isso que você fez (ou que você disse) não faz nenhum sentido! Não nos encontra: nos afasta – do nosso próprio mundo.
É verdade que aquela do livro não foi a frase na vida que mais se fez sentida; o que responde já à verdade de outra palavra, sentir. No lugar dessa frase, poderia escolher, por exemplo, com a bênção do nosso Senhor, o sol nunca mais vai se pôr.
A conexão realizada pela rima faz sentido e faz sentir como faz pouca coisa no mundo. Estou começando a pensar no sentido como uma sensação de união, uma sinestesia, estou começando a pensar nos cinco sentidos.
. . .
Sigo a máxima hiperrealista
tudo de que falamos é real
Por irremediável realismo
uma vez que se fala em Deus
não negociamos a sua óbvia realidade
É implacável a nossa doutrina
e a de dragões inofensivamente reais
. . .
para a Alice
Eu sou uma senhora japonesa
Não digo fui uma senhora japonesa
como em vidas passadas
ou algo assim
Sem dúvidas não o escrevo
Não digo
não escrevo que me sinto
uma senhora japonesa
É uma auto-identificação
Eu sou
porque de tal maneira
me identifico com aquelas
com que cruzamos na rua
nós duas
que somos ambas
e isso para mim
é já uma forma de auto-identificação
A única crise existencial jaz
na fantasia de casar com uma outra de nós
mas bem mais nova
bem tão linda
sem saber se isso faz de mim predadora
além de sapatão
. . .
Não o que quer dizer
Nem "como quer dizer"
como diz Daniel Pennac
Mas por que quer dizer
Ou: por que dizer?
Ou: por que sempre falar
em Brasil, José Miguel Wisnik?
Não sou mais antológico
Voltei a ser polêmico
. . .