Buscar
não a palavra poética
mas
a palavra não poética
Muito mais desafiador
Uma palavra que não crie
embora enquanto for palavra
talvez não seja possível
. . .
Buscar
não a palavra poética
mas
a palavra não poética
Muito mais desafiador
Uma palavra que não crie
embora enquanto for palavra
talvez não seja possível
. . .
Artigos,
cantigas,
cartas
de horror,
canções de lista,
papéis, papers,
"Ainda é cedo"
"não vá embora",
"A oposição dialética",
todos esses sintagmas
manjados,
frases velhas,
fases duras da vida,
"Escuras flores puras",
"As rosas eram todas amarelas",
não importa o que seja,
a toda hora,
qualquer ideia,
em cada trecho que ando
tudo o que escuto e vejo
me lembra dela
. . .
Vamos pensar um pouco sobre sinestesia.
Todo sentido é sinestésico. A própria dobra do pensamento é essa: reunir em um único golpe sensações provenientes de sistemas distintos. Lembremos, são cinco: olfato, audição, paladar, visão e tato. Há sempre inflexões, sempre cedemos a cada vez mais para um dos lados do pentagono – do pentagrama? –, no entanto, lá estão sempre todos reunidos na formação do significado, aquilo que “faz sentido”.
O princípio que os reuniria é: serem todos passivos. Mas nos permitamos isolar dois deles e perguntar pelo seus órgãos: o paladar e o tato, a língua e a mão. Provisoriamente, apenas, aceitemos considerar o paladar passivo. A língua se engaja em outras duas atividades que seriam, então, propriamente ativas: o beijo e a fala. É com ela que o sentido do tato, por sua vez, encontra seu órgão da mão – dotado também de especial pendor comunicativo – sempre em particular cooperação. Não se come nem se cozinha sem usar as mãos, não se fala, não se lê, não se escreve sem as mãos; e, por favor, não venha me beijar sem pegar no meu pescoço.
Antes de Aristóteles ter estabelecido as bases para a nossa teoria com cinco, um filósofo atomista defendia a proeminência do tato como único verdadeiro sentido. Para Demócrito, todo o resto é também decorrência de um toque físico.
Isso é bonito. Mas não esqueçamos que a mão que toca e a língua que masca procuram seu objeto – como o fazem os olhos, o nariz, os ouvidos –, mas também dão novos objetos à luz, dividem-nos com o grupo. A mão e a língua criam para fora da ficção do indivíduo. Independentemente da revisão fenomenológica e a autoria criativa que se queira imputar aos olhos e aos ouvidos, sem a mobilização de outros órgãos, esses não poderiam se engajar em atividades comunicativas. Sim, que os olhos sejam tão dotados de ação quanto quiserem, a linguagem não existirá jamais se essa criação não for partilhada de uma pessoa a outras – por meio das mãos, por meio das bocas.
Criança, meu primeiro vício foi chupar o dedo. Não nos esqueçamos da solidariedade poética entre a língua e a mão. Pelo menos por enquanto, não¹.
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¹ Em uma discussão, um idiota mandou duas mensagens a um menino que pretendia cabular aula: "você está sendo um idiota" e "no sentido grego da polis". Gostaria de acrescentar — a "solidariedade poética" — "no sentido grego da poiesis". Mas gostaria que não me considerassem por isso um idiota, no sentido brasileiro da idiotice.
David e Rodrigo me chamaram atenção sobre o papel prismático do paladar. A língua não só beija e fala, ela deglute. O que nos revela, em primeiro lugar, que: as palavras devem ter tanto gosto e textura como comidas e línguas alheias o têm. Em segundo lugar, parte importante do prazer em comer deve ser também uma atividade ativa. Não recebemos passivamente o sabor, mas o criamos, como as outras duas atividades, pelo trabalho da língua.
Se beijar e falar representam para nós distinções da cultura humana, não menos a língua se afasta da natureza quando nos alimenta, porque ela não o faz em nome da subsistência. Slam poetry, ceviche e french kiss são símbolos igualmente dispensáveis e necessários entre si.
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para Elaine
Marilyn loved to buy
Tifannys, Cartiers and Gorhams.
Indeed I prefer her
who said
to prefer diamonds
but sat
in the first line of Mocambo
so as Ella could present
where she wasn't allowed to
at that time.
A lot of people say instead
they prefer people
than diamonds.
No,
but they don't do
what she silently did.
Yes,
I don't buy it.
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O que veio antes:
o ovo ou a galinha?
A relação entre som e significado
é motivada pela poesia
ou pela motivação já existente
entre som e significado
é que se pode fazer poesia?
Venho frequentando bastante
as páginas do meu blog.
Acredito que sou
meu mais frequente leitor.
Acredito que o autor
que leio mais frequentemente
sou eu. Quem veio antes:
o ovo ou a galinha?
Estou tentando descobrir
um ritmo certo
para a medida de cada verso.
Se não fosse o som
a página seria um deserto.
"Nunca confundam causas e efeitos:
o problema do Brasil é a elite letrada
e não os analfabetos."
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Na casa de Fernanda Maria Rosana
não sobra fresta em janela
Seu neto me contou há algum tempo
que é porque morre-se de brisa
segundo um provérbio italiano
contado pela velha
Hoje enquanto cruzava a rua
me cruzou um vento frio
Súbito me lembrei de Maria Bethânia
Pronto lhe imaginei cantando
vamos viver no Nordeste
Anarina
vamos morrer
de brisa
. . .
Quando enfim puderem comprovar que os signos não são de todo arbitrários, será importante medir a extensão que designa o som ma. Falo menos do significado também extenso de palavras como mar, mãe ou demais e mais da duração profunda de que se ocupou esse mês de março. E não consigo senão pensar no mês de maio.
Por que se tem raiva do tamanho de maio? Porque se tem pressa. E no entanto é preciso adiar a sua demora. Maio, quando não passa: só então traz suas grandes, largas, dilatadas mudanças, tão verdadeiras. Tão únicas de maio, tão próprias dele, tão somente para os que podem não vê-las: quando o tempo de maio vai junhando no ar de velas e balões rumo ao céu.
Sou levado a crer que têm ma as coisas em que entramos e, ao cabo de um extenso processo, saímos transformados; como o ar vibrando, que, pela boca fechada, sai do nariz até ser finalmente solto na qualidade aberta de um a. Sou ainda novo, mas, creio, quando puderem comprová-lo já estarei morto.
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para Luiz e Moti
Certos tipos de mosquito
deixam apenas uma leve impressão
cinza na mão e na parede
quando são esmagados.
Não se encontram mais patas,
antenas, asas; me pergunto
para onde foi aquele corpo
que pareceu apenas pulverizar-se.
Nesses momentos, fico
com a leve impressão
de que tais tipos de mosquito
têm alma. E deixo de matá-los
até que surja outro da raça.
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para o Chico
Não se pode confundir a história feita a contrapelo com uma história que só compreenda resistências. Há sempre os que cederam, que não resistiram. Me preocupo com o falseamento de quem conte apenas a história da coragem. Perderá a condição humana fundamental da covardia. Adriana Calcanhotto por exemplo construiu sua obra inteira entorno da ausência de brio. Você tem brio? Ou, tão mais simplesmente: talvez porque não haverá mais corajosos se não houver covardes.
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A língua é só uma — a que fala, a que beija. Assim não sei o quão se diferem de fato o falar e o beijar. Um bom beijo nos fala assim como em uma boa conversa as línguas se encontram.
Quando beijamos, a língua se lembra do exercício da fala: essa que beija é a mesma que o dia todo com a linguagem trabalha; e por que na articulação da fala deixaria de haver uma lembrança do beijo? Falar é tentar beijar com palavras.
Falar faz sentido. Não preciso nem falar que beijar também faz sentido. Verdadeiramente acredito que qualquer órgão pensa tanto quanto o órgão cerebral. Minha língua pensa: falando, beijando, na sua forma intercomunicativa, particular e prazerosa de pensamento. Na sua linguagem.
Mas então o que tentamos dizer durante um beijo? Nada mais do que já dizemos.
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O dia é
escuro
A noite é
clara
É: o
dia
a
noite
Por isso o dia denso
a noite fina
Como um dia
negro
que só a noite
ilumina
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e pro Henrique
Que seja um eterno discord,
amigo, comigo concorde:
o som de uma call é um acorde.
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Para Auerbach,
a literatura havia acabado.
Para mim —
com o perdão de ter justaposto
Auerbach e mim —,
peço licença:
a literatura acabou
de começar.
Não há mais tempo a perder.
Quando da publicação
do primeiro volume
da busca pelo tempo perdido,
era 70% a taxa de analfabetos
no país em que nasci e vivo.
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Cansei dos descolados.
Tenho preferido os colados,
com calos, e os calados.
"Eu não gosto do bom gosto"
"Estou farto do lirismo comedido"
Vi um vídeo chamado de cringe.
Era uma menina feia
fazendo uma trend.
Não chamariam assim
uma menina bonita
com domínio da técnica:
aparentemente,
consideram aqueles
que se adequam bem à estupidez
mais inteligentes.
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Chá de espinheira-santa
Um pouco de João Gilberto
— pode ser En México
É que o brujo é médico
. . .
Quando a gente
deixa a louça secando
depois de lavá-la,
ela fica com umas espécies
de manchinhas. Tenho tido
a sensação de insetos andando
pelo meu corpo. Tenho
tido brotoejas, acho
que de calor.
Às vezes meu celular para
de tocar música do nada.
A mola da porta
da minha geladeira
está meio gasta.
Ela não fica mais fechada.
. . .
O corpo não é apenas uma fonte de cognição; também ele está submetido a um mapeamento cognitivo. O nosso trato vocal só pode produzir os sons significativos da língua e, assim, organizar o mundo, uma vez que uma organização precedente lhe houver sujeitado — entre dental, labial e tal.
É aprendendo que se ensina. Mas não digo: é adquirindo que se fala. Não há aquisição possível, porque não há triunfo ou conquista.
Esse blog é meu diário investigativo. Pelo próprio princípio que me norteia a investigação tenho de reconhecê-lo.
O princípio: trazer à luz é encontrar uma pista.
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Para Saussure, só tem sentido o que tem contraste. É como se ele dissesse: cresça e aparesça. Ou: quem não é visto não é lembrado. Mas não o imagino entrando num baile vestido de paetê. É como se, jakobsonianamente, eu o imaginasse com uma oposição mínima contrastiva, é como se ele surgisse na festa com um cravo aparecendo de leve para fora do bolso de seu terno, apenas entrevisto — ou entrelembrado? E eu sinto esse cravo opondo-se à falta mesma de um cravo no terno de outros convidados, crescendo.
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Tudo que a escrita controla
a leitura descontrola
Não sei pensei isso agora
como se estivesse fora de moda
contra a letra haver revolta.
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Henrique é um pré-adolescente de 11 anos. Tem aulas particulares comigo há algum tempo. Na aula da semana passada, escreveu um poema. Normativamente corrigi alguns fatos de português junto a ele, e, no mais, o poema está aqui como ele o fez:
Uma menina chegou em uma cidade.
Ela não sabia de nada.
Absolutamente nada.
Nem as coisas mais simples.
Essa menina chegou a um menino.
Ela perguntou: o que é um raio?
O menino respondeu que é um choque
que vem de uma chuva mais forte
chamada de “tempestade”.
Mas ela não sabia nem mesmo o que era chuva.
Era tudo tão estranho...
Ela se permitiu perguntar ao menino:
O que é chuva?
Gentilmente, o menino respondeu:
É um monte de nuvens que começam a soltar água
Do mesmo jeito que você solta lágrimas.
Henrique quis saber por que, quando eu li em voz alta, o poema pareceu ser tão melhor do que antes ele achava.
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