ALÉM DA CELULOSE

 

O verso não é a vida,

a vida se esconde,

ela está na quebra

de um verso, no verso

de uma página,

nas gavetas, não no livro

mas nas quinas de uma estante,

é o descanso dos olhos,

a cesura, a embocadura,

está no respiro, num suspiro,

ela não é tudo, não é

totalizante: da vida

a vida é apenas um instante.

. . .

À ESPERA DE QUE ME LEIA

 

Totô, eu ainda acredito que é possível conhecer

alguma coisa.

Não só possível como desejável.

Totô, o meu desejo me desloca

e meu lugar não me basta ainda.

Parte do meu interesse pelas coisas

me ensinou que os estoicos e os cínicos

tinham filosoficamente muito em comum.

Adjetivamente também o tem,

mesmo hoje em dia,

eu acho.

E não admito dizerem que

o pensamento nos afasta da vida real.

Não se o pensamento for vivo.

Não se ele for real.

Não vêm a conhecer outras ideias,

outras pessoas, chamem como quiser,

outras culturas?

Pensando o mundo um xamã faz chover.

Com isso aprendo tão mais sobre

a chuva: chego até a senti-la

diferente sobre o meu corpo.

Nunca foi preciso esquecer do corpo.

É uma questão para mim necessária:

se não pulso creio que estou morto.

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CONVERSA

 

Meu pai me diz

a gente não tem ideia

dos processos evolutivos

pelos quais estamos passando

enquanto humanos

agora neste momento


Eu respondo

a gente não tem ideia

das transformações no português

às quais damos origem

enquanto falamos

agora neste momento


Minha mãe

meninos não briguem

Mas não era uma briga


Minha irmã

a gente não tem ideia

de quando uma conversa

entre o Mimi e o papai

pode-se tornar uma briga

a qualquer momento

. . .

FOGE DE MIM (tradução de Vete de mí)

 

Tu,

Que enches tudo de alegria e juventude

E enxergas vultos numa noite à contraluz

E ouves o canto perfumado do azul,

Foge de mim!

Não te detenhas a olhar

Os ramos mortos do rosal

Que se desmancham sem dar flor,

Olha a paisagem do amor

Que é razão de se sonhar e amar...


Eu,

Que tive armas contra toda a maldade,

Tenho as mãos já tão cansadas de lutar

Que nem consigo te agarrar:

Pobre de mim!

Serei em tua vida o melhor,

Só uma névoa de outrora,

Quando estiver a me esquecer,

Como é melhor o verso agora

Que não se pode reviver...

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"A ARTE E A POLÍTICA SÃO DEMAIS PARA UM SÓ HOMEM"

 

Discordo frontalmente de José Miguel Wisnik. Não há o menor interesse em João Gilberto ter apresentado um compósito melódico etc para uma possível definição de Brasil enquanto qualquer substantivo abstrato. Meu Deus do céu e por que diabo falar em Brasil? João é necessário porque encanta nossas serpentes. Não é "civilizar" — oi? — nada, não.

Há quem diga fala em magia como quem lança mão de noções do tipo "mana". A quem o diga eu respondo: o signo excedente, noção mana, é sempre essa ideia enxertada de Brasil.

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EFEMÉRIDE

 

Escrevi quase cem poemas

em página de papel

em página de blog


Não há um que preste


Tenho muitos amigos

de carne e osso


Boto minha mão no fogo

por quase todos

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UMA COISA QUE NÃO FAZ NEM UM SENTIDO

 

Uma coisa que não faz nenhum sentido: dentre as coisas que li sobre o sentido, a que mais fez sentido estava em um manual de semântica formal feito instrumentalmente para cursos introdutórios de graduação.

A linha teórica – analítica, fregeana – não me agrada nada. Afirma que unicórnio não tem referência e ao escutarmos uma sentença o que buscamos é um critério para chegar ao seu valor de verdade. Mas, porque lá li o significado é o veículo que conecta a expressão com o referente, externo à linguagem, me fez pensar que o sentido é a experiência tida pelo sujeito ao encontrar-se com o mundo. Tanto mais se, por inversão, a ausência de sentido passa a ser o desencontro. De onde, em uma briga, reclamamos isso que você fez (ou que você disse) não faz nenhum sentido! Não nos encontra: nos afasta – do nosso próprio mundo.

É verdade que aquela do livro não foi a frase na vida que mais se fez sentida; o que responde já à verdade de outra palavra, sentir. No lugar dessa frase, poderia escolher, por exemplo, com a bênção do nosso Senhor, o sol nunca mais vai se pôr.

A conexão realizada pela rima faz sentido e faz sentir como faz pouca coisa no mundo. Estou começando a pensar no sentido como uma sensação de união, uma sinestesia, estou começando a pensar nos cinco sentidos.

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PÓS-NEOREALISMO

 

Sigo a máxima hiperrealista

tudo de que falamos é real

Por irremediável realismo

uma vez que se fala em Deus

não negociamos a sua óbvia realidade

É implacável a nossa doutrina

e a de dragões inofensivamente reais

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CASAMENTO JAPONÊS

para a Alice 

Eu sou uma senhora japonesa

Não digo fui uma senhora japonesa

como em vidas passadas

ou algo assim

Sem dúvidas não o escrevo

Não digo

não escrevo que me sinto

uma senhora japonesa

É uma auto-identificação

Eu sou

porque de tal maneira

me identifico com aquelas

com que cruzamos na rua

nós duas

que somos ambas

e isso para mim

é já uma forma de auto-identificação


A única crise existencial jaz

na fantasia de casar com uma outra de nós

mas bem mais nova

bem tão linda

sem saber se isso faz de mim predadora

além de sapatão

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NOT A LOVESONG

 

Whenever I'm in peace

you come along.

Why can't you, please,

just leave me alone?

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POR QUE DIZER?


Não o que quer dizer

Nem "como quer dizer"

como diz Daniel Pennac

Mas por que quer dizer

Ou: por que dizer?

Ou: por que sempre falar

em Brasil, José Miguel Wisnik?

Não sou mais antológico

Voltei a ser polêmico

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VERSOS

 

Versos que eu gostaria de ter escrito

Reverencio a tua beleza

Física também mas não só

Versos que eu gostaria de não ter escrito

Versos que eu gostaria de ter escrito

Mas me recuso a escrever um poema

com versos como

A cachoeira reverbera

As folhas farfalham

e já não sei mais

se o fiz?

Para não dar palanque

para louco crescer

como a gente faz?

Fala ou cala? Não escreve

nem descreve?

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FALO DO AMOR

 pois nada jamais é perdido

Claude Lévi-Strauss

Imagina

viver uma vida

sem a percerpção química

que do açúcar tem as formigas

Está aqui


Para mim

não foi na perda do narrador

o declínio da experiência

Para mim pode ter sido

nisso

nunca ter enlouquecido

com a quina melada

de uma mesa ao entrar na sala ou

antes

nunca ter ido em direção à sala

suspeitando do melado

já no quarto


Ou jamais também

Porque sinto que tenho várias experiências

E não falo de experiências

que o Grand Hotel oferece

aos turistas na Tailândia

Falo de amor


Que me importa se um autor

cunhou o amor?

E se outro declarou

a perda da experiência

tive experiências

envolvendo o que eu e outros

muito depois

entendemos por amor e raiva

E o ódio me foi formativo

E o riso

mais do que a aura


Me lêem mal?

Não há polêmica

Dentre os lugares que já visitei

o que mais me emocionou

foi o memorial a Walter Benjamin

em Portbou, Cataluña

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POEMA COM EXCERTO DE JORNAL

 

Pistache é o novo ninho

com nutela. Há antologias

porque há sempre um novo

sabor, um novo autor,

uma moda, uma fase,

uma era — e por que escrever

um novo poema? A morte

é uma ave velha. Hoje

mesmo eu sonhei com ela.


Evidências arqueológicas na Turquia e na Síria mostram que o pistache já era consumido desde os anos 7000 a.C. Agora, caiu de vez no gosto dos brasileiros e tem feito bonito nas cozinhas e confeitarias.

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VERSOMAN

22 de fevereiro de 2024

 

A partir de agora

considero tudo verso

A fala é verso

A falha é verso

A folha é verso

Eu sou quem toma tudo por verso

Eu penso logo everso:

Sentirei saudades do carnaval

Beijava o Antonio todo dia


Talvez seja mesmo o fim da poesia

tal como a conhecíamos

Ou enfim a retomada dela

tal como ela nascia

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NOSSA POESIA SERÁ BURGUESA

 20 de fevereiro de 2024

Ano passado eu trabalhei

em fevereiro

e vejo pelos arquivos do blog

que não escrevi poesia


Março passado

escrevi ao todo três poemas

Eram bons


Agora

venho publicar meu segundo poema

só deste dia de hoje

Os dois uma merda


Quem trabalha não escreve

Vejo que preciso voltar a trabalhar

Não tenho prestado muito a escrever


Adília Lopes

teus últimos poemas também são meio ruins

Me diz se paraste de trabalhar

Até onde eu sei nunca começaste

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POEMA SOBRE MÃE

 

é bom e fácil de fazer porque todo mundo tem mãe. Quase todo mundo ama a mãe. Isso aquece o coração e as vendas. E quem não ama a mãe fica triste se o assusto é esse. Ainda mais se a tristeza engaja, então é bom e fácil para vender livro de poesia. Mesmo quem não tem pai geralmente tem mãe. Mas eu tenho um amigo que não tem mãe. Ele ama a mãe mesmo assim. Também tenho um amigo que tem um pai muito mais legal que a mãe. Mesmo assim ele acha o contrário. Ele acha que a mãe é o máximo e o pai é o mínimo, sendo que não é nada disso. O avesso também tive: um amigo que a mãe era o máximo e o pai o mínimo, eles sim. Me punha até mais raiva, porque, quando eu tinha esse amigo, ele podia jurar de pé junto sobre a grandeza do pai, chato demais. E tive e tenho muitos amigos com os dois pais legais ou os dois chatos ou um mais legal que outro, só que tudo bem reconhecido no seu devido lugar. E muitos amigos sem pai. Quando criança não vi Rei Leão. Às vezes faço piadas edípicas sobre matar meu pai e casar com etc. Dessa vez não quis falar de nenhum dos dois.

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A CHEGADA DO SAMBA


Caetano e suas canções de lista


Os meus poemas de lista

ou de antologia


— se entre uma e outra

não sei onde faz a risca


O Império de Caetano Veloso

não é um império


Uma lista é paratática

Um império é hipotático


e toda beleza que for anárquica

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Quatro horas na piscina

 

hoje. Quatro horas densas.

Quatro horas dentro

da água. Quatro horas submersas

em reminiscência da bolsa materna.

Expectativa de vida de 80 anos

e depois disso outra vida eterna

embaixo da terra.

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POEMA EM TRÊS TEMPOS SOBRE DUAS CLARAS


Clara diz

que não gosta de seu nome

porque denota uma

como

espécie de

— enfim,

vocês entenderam.


Mas, Clara

meu bem,

você é mesmo tão clarinha…

Cidade Universitária, São Paulo

23 de junho de 2022

*

Clara,

você não é obtusa.


Tranquilamente posso-lhe responder

como já o fizeram

Claro, Clara.


Seus trabalhos,

se de cinco a oito,

tomam sempre cinco páginas,

e há uns dias você disse

gostaria de me livrar do meu poder de síntese.


Você é Clara

mais do que porque clarinha

e sobretudo essa claridade

dentre as que a nomearam

é que lhe cabe assumir

ou resplender, ou refletir.

Rio São Francisco, Pão de Açúcar, Alagoas

22 de janeiro de 2024

*

Outra Clara.

Não clarinha,

mas uma preta de pele Clara:

uma Clara parda;

uma chiara oscura;

ou, segundo seu pai: mulata.


Para mim é Clara

porque me acende e faz graça,

porque se me faz farta

a luz que irradia de seu corpo e me mata,

porque é do que preciso

e basta.

Praia do Félix, Ubatuba, São Paulo 1º de fevereiro de 2024

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