Blog do Juízo Original

DE UMA NOTA SÓ

 

O Tomé me disse que eu tenho uma coisa de adicto

e desde então eu tenho vontade e medo

de jogar no Tigrinho

Alguém me disse que o último livro de poemas da Adília Lopes era

[uma coleção de pensamentos

A pessoa não me disse exatamente isso

mas agora é assim que eu entendo

e acho bonito

Se eu o tivesse feito a tempo

também assim teria sido o meu livro

Mas agora já é tarde

Todos os meus versos antigos

sinto como se fossem pensamentos perdidos

Vi ontem uma influencer dizer que

embora se diga

que não se possa fazer um poema

com uma única rima

assim o fez Caetano nos versos de Cajuína

E eu concordo

Nesse momento mesmo poderia dizer que os meus ouvidos

guardam para si como que um som favorito

predileto entre todos, preferido,

escolhido

. . .

UMA CANÇÃO É UM POEMA QUE SABE O QUE FAZ

 

Se, como disse Saussure,

a poesia é a primeira ciência da linguagem,

a canção é sua mais profunda consciência

– da poesia, da linguagem

e de sua própria ciência –

e de muitas mais consequências

de sua abordagem:

sobre as quais estou muito certo

(so sure)

embora não preste para descrevê-las de modo correto

num texto escrito.

Portanto fechem essa página

– chega disso por hoje –

e me imaginem cantar bonito

. . .

GÊNERO: CARTA DE SUICÍDIO

 

O conceito de "capital cultural" nos obriga a considerar algumas consequências do termo polissêmico "riqueza". Riqueza de quê? Pois bem, vamos agora a apenas uma dessas consequências.

Muito já se disse sobre o princípio aristocrático do deboche aos "novos ricos". E sabe-se bem que o problema do Brasil não é nem jamais será a classe dos novos ricos, dos que passaram a sê-los, mas a classe dos velhos pobres, dos que nunca deixam de sê-los:

"Abro a porta, vejo a fumaça no asfalto
O Sol me cega, eu sigo em frente
Encaro o Sol, deixo meu rastro para trás
O dia corre assim veloz
O dia corre além de nós
E eu vou me desviando das aeronaves
Que aterrissam a todo instante
Morrer já não parece novo, já não assusta
Desço a Rua Augusta a 120 por hora
(...) O Sol nas bancas de revista
E na capa da revista
Sombra, grana e água fresca
Vejo novos ricos
Vejo velhos pobres
(...) As meninas dos Jardins gostam de rap"

No entanto talvez ainda não se tenha dito tanto sobre o princípio aristocrático, em outro sentido todavia análogo, de um possível desprezo aos "novos ricos" na extensão cultural que se dá à ideia de capital: "os novos cultos". Uma questão que já se enfrentava na década de 1940 na Europa Ocidental, escreve Adorno no Fragmento 32, "Os selvagens não são homens melhores", de sua Minima Moralia:

"Entre os estudantes negros de economia política, os siameses em Oxford e, em geral, entre os laboriosos historiadores da arte e os musicólogos de origem pequeno-burguesa, pode encontrar-se a inclinação e a prontidão para associar à apropriação do que estudam, do novo, um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, pelo reconhecido. A disposição anímica intransigente é o contrário do estado selvagem, do espírito de neófito ou dos 'espaços não capitalistas'. Pressupõe experiência, memória histórica, nervosismo de pensamento e, acima de tudo, uma substancial dose de tédio. Sempre foi possível observar como aqueles que, com sangue jovem e total candura, se integravam em grupos radicais desertavam, logo que se apercebiam da força da tradição. Há que ter esta dentro de si para a poder odiar. O facto de os esnobes mostrarem um maior sentido pelos movimentos vanguardistas na arte do que os proletários lança também alguma luz sobre a política. Os epígonos e os recém-chegados têm uma angustiante afinidade pelo positivismo, desde os admiradores de Carnap na índia até aos corajosos apologistas dos mestres alemães Matthias Griinewald ou Heinrich Schiitz. Má psicologia seria a que admitisse que aquilo de que se está excluído desperta apenas ódio e ressentimento; suscita também um absorvente e impaciente tipo de amor, e aqueles que não foram arrebanhados pela cultura repressiva facilmente se tornam a sua mais néscia tropa defensiva."

Depois de uma leitura tão indigesta, é a hora de nós nos perguntarmos, em nossos corações, se também nós aceitamos apenas o ódio dos subalternos, que nos devolve a imagem de nossa própria relação com o que foi nos desagradavelmente legado; se, então, não estamos dispostos a aceitar também o amor dos subalternos, um amor de que sentimos não precisar, pois nunca se ama tudo aquilo que não precisamos jamais amar para ter.

O que se chama de capital cultural.

Se nos indagássemos no fundo de nossos corações, descobriríamos que mesmo o nosso ódio à tradição é estéril e não serve de nada. É a mais forte exclusão, é a mais perversa promessa: estabelece-se que, a partir de agora, dele só poderão participar aqueles que sequer possam a vir conhecer o que chamamos "nossa tradição" (como se por direito, mas por privilégio e, sobretudo, absoluta ignorância); pois os que, conhecendo-a, não travarem com ela a mesma relação que travamos nós — aqueles que nunca precisamos conhecê-la, uma vez que dela cremos que surgimos —, esses talvez não irão detestá-la da maneira que a alguns parece adequada, recomendada, correta:

"Os acertos dos privilegiados devem valer menos que as tentativas equivocadas dos despossuídos. Pois o privilégio paga inclusive por isso: acertos."

Não, enquanto classe, a única boa contribuição que seremos capazes de dar ao mundo é a traição ou o suicídio. Não nos termos do que achamos que deve ser uma traição ou um suicídio. Nos termos dos outros, nos termos da exigência de traição ou de suicídio que nos for feita.

O que pode envolver levar de volta todas as chicotadas já dadas:

"Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não
(...) Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão
Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação"

— Nesse caso, estaremos dispostos?

Mas, e o pior, se não só nos for preciso pagar e sofrer, isto é, afetar-se na economia do ódio, se também nos for pedido o que nunca poderíamos ter previsto: amar, nos moldes de um amor "neófito" que, pelo gesto de uma pura distinção, detestamos — também a isso estaremos dispostos?

Abrir mão do nosso "gosto", de um gosto tal que pode se dar ao luxo inclusive do desdém, desprezo ou descaso aos próprios objetos que lhe são inerentes, não: isso seria muito perigoso.

. . .


POEMAS QUE EU JAMAIS SERIA CAPAZ DE COMPOR MAS ESCUTO EM UMA CONVERSA DE TELEFONE NO ÔNIBUS

 

Deixa disso

Ainda mais arma branca

que não tem fiança

Com prejuízo a gente já acorda todo dia

seja de dinheiro, o que for

Não vai querer adiantar a morte de um bezerro

por conta de uma dívida

Te falar uma coisa

já viu algum ladrão aposentado?

Bandido não aposenta

A gente não nasceu pra isso

Você vai e mata o cara

o cara é da facção

alguém vai comprar a briga do cara

Você vai lutar contra um exército?

Deixa quieto

. . .

 

Quais feitos

nos fará

o mês de maio?

Para quais fatos

o mês de maio

nos trará grandes

frutos?

O mês de maio 

sonha com que

feitiços?

E sua luz,

essa imensa

e tamanha luz

que maio recebe

aqui

no hemisfério sul,

nos urde quais

planos,

filhos, filmes

em segredo?

. . .

 

Não sei ser "eu" no WhatsApp. Sou no WhatsApp inevitavelmente uma estilização de "mim". A exterioridade da escrita: estou sempre "me" representando, respondendo como se eu fosse "eu", e isso é muito difícil, porra, não dá jeito, eu não tenho jeito – eu, sem aspas, sem dúvidas não tenho jeito.

Tudo que me resta é a afetação mais artificial possível de uma naturalidade (para que acreditem mesmo que nas mensagens "eu" sou eu) e três pontos que alinho num suspiro reticente (para sair logo, e breve, o quanto antes, de cena)...

E acabou o poema.

. . .

 

Tenho medo de quem não tem medo de ficar maluco,

somos possuídos por nossos próprios significados,

por acaso vocês não percebem?

Somos reféns daquilo que dotamos de sentido, 

mas vocês ficaram loucos

e se dão ao luxo de não ter a paranoia,

quer dizer o auto-monitoramento

que é relegado a fracos,

sitiados e poucos.

. . .

MUITO OBRIGADO

 

No banheiro de um café colombiano tocado por um casal gay na zona rural do município de Guararema, no interior do estado de São Paulo, vejo um quadro em cima do vaso. Trata-se de uma impressão barata, em lona, de letreiros esteriotipicamente estilizados: “Café”, “Hotel”, Diner”; até Moulin Rouge. Começo a pensar que estou ficando louco. Percebo que é quase sempre assim: símbolos me dão pânico. A sensação de ter que sustentar a sua convencionalização — uma vez que, relativizados, passo a estranhá-los e ganhar consciência de sua arbitrariedade — leva à minha própria percepção enquanto alguém também profundamente arbitrário, que sustenta símbolos e convenções só para si. Um esquizofrênico, ainda mais diante de símbolos do capitalismo.

Mas a minha loucura nada mais é que a minha forma de pensar individualmente o que se chama, coletivamente, de “crise existencial” – algo que acometeria a “todos os homens” no ato de tomar consciência de sua dimensão “humana”. Ora, se penso no sol explodindo não penso que estamos danados, penso que não saberei mais sustentar o peso da reprodução social da vida se tenho consciência desse fato. E logo ficarei doido.

No entanto não quero produzir um texto de lamúria, quero produzir uma intervenção. Se, de uma forma ou de outra meu destino é a esquizofrenia, permitam-me ser propositivo e apresentar-me-lhes uma solução. Meu medo metafórico da loucura é também literalmente louco porque é um problema do qual sua lógica não permite saída: sendo uma problemática propriamente particular da minha ficção individual, não posso sair dela por qualquer concepção também individual. Nem, tampouco, do “coletivo” pensado por sua vez ele mesmo como um organismo colossal mas ainda unitário, todavia me é possível fugir desse esquema pela relação, pela participação, pelo compartilhamento. 

Assim agradeço a todos aqueles que são a condição necessária para que eu possa viver sem enlouquecer e encerro por aqui o meu lamento.

. . .

DE VOLTA AO CHILE

 

Sinto saudades do Chile como quem sente saudades do futuro. Porque o Chile é o país do futuro. Não como um slogan, não como quem põe fé no progresso da evolução – pelo contrário, porque o Chile foi laboratório do neoliberalismo nos anos 70 e imagino que, após o capitalismo acabar consigo e com tudo, repovoaremos o mundo um pouco como os chilenos repovoaram o Chile. Sinto saudades do Chile porque se lembro de lá sei que a terra arrasada há de ser no entanto também uma terra reabitada, assim como quero muito acreditar que, apesar de seu fim, ainda será possível viver no mundo.

. . .

IMPRUDÊNCIAS

 

Imprudentemente

pedi para a atendente descartar meu bilhete único antigo

com quem eu tinha tantas memórias boas

Imprudentemente eu voltei a escrever poemas

sem ter voltado a ler poesia

não tenho mais uma técnica do verso agora


(Não sei se sequer tenho uma técnica de vida

que fosse capaz de me inserir entre os naif

como um artista.)


Embora tenha meu bilhete único novo

com quem eu tanto me empolguei que

imprudentemente

me livrei de um grande amigo

Meu companheiro lindo

aquele cartão não me saía do bolso

e agora está num saco de lixo

jogado entre outros

. . .

ALGUMAS OBSERVAÇÕES

 

Ninguém fala em prosa:

uma fala é um fragmento

que lembra mais um verso,

um epigrama, que um parágrafo

Eu tenho estado sozinho

tenho pensado mais do que falado

e isso me tem jogado para a prosa

(a prosa é um discurso solitário)


Esse poema mesmo não surgiu para alguém

Surgiu no oco da minha cabeça louca

Por isso me desculpem essa sonoridade assim meio torta

rimas óbvias para orelhas moucas

. . .

Anteontem sonhei que fazia sexo oral na minha avó


Tenho tido dificuldades com os sonhos. Não é nenhuma dificuldade especial com o sono. É que, por força de leitura, acho que me convenci do animismo, me convenci de que tudo funciona com base numa certa lógica do espírito, quer dizer, do esprit francês, tanto da mente quanto dos fantasmas. Sonhar para mim não é desligar meu pensamento. Quando sonho penso demais e sem fronteiras e isso me custa muito, é algo que me cansa, me perturba. Hoje, enquanto delirava em vigília, pensei mesmo que isso pode se dever à alucinação inevitável que sofre uma cabeça tão ativa quanto a minha quando fecho os olhos, com a ação motivada daquilo tudo que apresenta resistência ao consciente. Pensei isso em vigília. "O onirismo psicótico caracteriza-se pela perda da distinção social entre alucinação e realidade", diz o google. Se eu sustentar algo que pensei em vigília terei me tornado um psicótico? De médico e louco todo mundo tem um pouco.

. . .

NUNCA SE PODE FALAR DE MÚSICA E DE CINEMA

 

Andava refletindo no meu último banho sobre esta escolha que todos nós, hipsters de classe média, temos que fazer, por volta dos 20 anos, entre uma predileção pela Música ou pelo Cinema e, de repente, me peguei pensando na escolha que temos de fazer, nós, aqueles que se prometiam a vida de escritor, entre a vida e a escrita. Não me arrependo de ter escolhido a vida. No entanto restará sempre aqui o que de outro modo poderia ter sido.

. . .

30 de dezembro de 2024


Após cruzar a ponte sobre o Rio Real, vindo de São Cristovão, antiga cidade de Sergipe d'El Rey, há alguns poucos quilômetros até que se entre na Bahia. Com eles, vivemos em Sergipe sob a mesma baixa pressão do resto do litoral nordestino. Não me parece um fenômeno tradicionalmente atmosférico. Segundo a ciência atmosférica tradicional, perto do mar é onde se encontram as maiores condições de pressão. No entanto, do Rio Real para cima, em todo o litoral do que sempre se chamou de Nordeste, isto é, excluída a Bahia, tudo está como sob o efeito de uma leve descompressão. Na Bahia não. Assim que se cruza a fonteira tudo é imediatamente mais denso. Não adianta dizerem que minha escrita é mistificadora e artificial. Não me ofendo. Mistificadora e artifical é a própria Bahia que minha escrita apenas imita, e a Bahia tampouco deveria pela minha escrita se sentir ofendida.
Estando já pela terceira vez aqui, tendo conhecido Salvador, Santo Amaro, Cachoeira, boa parte do litoral norte e tendo voltado um pouco já para sair — para ir ao Ceará –, desta vez, a Bahia com B maiúsculo me importa menos. Pode ser que ao fim tudo isso tenha sido uma função do meu jeito de entrar aqui desta vez, por de fininho não ter surpreendido a Bahia de forma que ela pudesse se armar para me receber, eu, esse bicho noturno que invade a casa e fareja o seu odor estonteante, pesado. Na minha caça esta é uma preparação sutil, algo que talvez não seja, mas de qualquer forma serve agora para me ensinar que o que eu buscava na viagem pode não se revelar para mim, e que assim eu tenho que procurar ativamente por outra coisa. Ou, se não outra coisa, uma outra forma de relação. Pois e se nem as coisas nem as relações estivessem dadas? Teremos que inventá-las.
Eu sequer sei se existe uma bahia com b minúsculo. É provável que sim e eu jamais venha a acessá-la, ainda que assim que pela primeira vez em que eu tenha posto o pé no aeroporto de Salvador, o Chico tenha me avisado: começa a ditadura da imanência. "Assim é" ou "É a Bahêa". Curioso que o pós-modernismo tenha me convencido que Transcendência se escreve com T maiúsculo e se deve odiá-la e imanência se escreve com i minúsculo e se deve amá-la, e nunca o contrário.
. . .

HOJE

 

Ontem, escrevia

No estado de vigília, a gente não sai da gente, a gente pra sempre mora num não morar na gente. Nada ganha pregnância. Se não durmo profundo, continuo com um resíduo de mim mesmo do qual devo esquecer se quero impressionar-me por alguma outra coisa. Se quero me sentir na Bahia preciso esquecer profundamente meu dia de ontem, de anteontem, e o de antes de antes de ontem, e o de antes ainda – na Bahia, em Sergipe, em São Paulo, em Minas –, preciso dormir fundo. Enquanto não durma fundo, continuarei nunca tendo saído de São Paulo. E eu preciso não me levar junto. Para que eu consiga me sentir verdadeiramente em outro lugar, preciso estar desacompanhado de mim. Mas talvez para isso seja mais preciso vestir muitas roupas que me despojar.

Mas e se de repende eu não quiser mais me sentir verdadeiramente em outro lugar? Se eu quiser me carregar sempre, levar-me a muitos lugares e, não estando neles, ver no que dá?

Talvez seja preciso então não sair mesmo do lugar, em lugares diferentes. O que me parecera tão assustador, que tinha me parecido a maior imobilidade possível. Se nem saindo do lugar para sair do lugar, então como? Pela habitação intensiva desse lugar. O máximo de possibilidades que eu puder extender nesse lugar em que estou. Para viajar mais e melhor: não trocar de mim, mas me levar, a fim de me obrigar a mudar. Apenas então terei mudado, sendo eu mesmo de formas diferentes.

Embora sinta sim algo como uma nostalgia das minhas antigas obsessões. Depois que se foi maníaco nada mais tem o colorido daquela noia. Como um vício. Meu pai tinha me dito: você vai viajando e vai querendo viajar mais e vai voltando mais apático. Até que as próprias viagens se me tornam apáticas.

Ou de repente eu esteja vivendo outra forma de luto. Não da mania, não da obsessão, nem da viagem,

quando me interromperam – estava um pouco afastado, sentado com o caderno no colo e os pés no mar – para brindar algo com uma taça de espumante. Brindei, tomei muito mais, me embriaguei, e agora nada daquilo mais vale.

. . .

RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA


Pela minhas bisavós

que eram analfabetas

pela minha mãe

que foi neta delas

devolvei à música

o que é da música


Tirai da folha a tintura

deixai a canção em paz

deixai o livro em página

deitai fora vossa roupa

e vamos à praia

. . .

O NATAL SÓBRIO DE 2024, UM NATAL SEM ÁLCOOL

 

Esse ano não gostei do natal. Não foi um dia mau. Pelo contrário: por mesmo em sua plena realização ter permanecido tão mediocre, é que o natal se revelou para mim uma data sem nada de especial. Ou talvez porque eu tenha ganhado dinheiro apenas. Não houve troca de presentes. Ganhei três envelopes com dinheiro e não dei nada a ninguém. Minha prima ganhou três brinquedos, ficou muito contente. Que me perdoe a criança que eu fui, mas aquela felicidade estúpida para mim só tornou isso tudo ainda mais banal. Quem te deu esse presente, foi o Papai Noel? Não, mãe, foi o papai. Ela sabia de tudo. Jamais ser condescendente com qualquer criança. Elas entendem tudo. Hão de entender que essa data que poderia ser bela murchou, tornou-se vã, estúpida, medíocre, mais ainda do que muitos adultos. A maior beleza será enfim aceitar o fato inevitável de se reconhecer, esse de sua triste decadência, quando amadurecermos e já tivermos esquecido a candura que na verdade nunca chegamos a ter sequer em nossa infância. Mesmo porque a lição de Jesus Cristo é estéril. É preciso jamais perdoar. Não perdoar a nada, não nos perdoar pelo que somos, não perdoar o natal pelo que se tornou, não Roberto Carlos, não o amigo secreto da Rede Globo, não a sua reportagem que meus avós acabam de assistir sobre o reisado que o apresenta na forma suave, inofensiva, burra, não perdoar Clarice Lispector pela forma como tratava suas empregadas, por ter escrito cartas à sua irmã sobre "como domesticá-las", não o pop e a definição de pop como "gostar de gostar", não a Selena Gomez cantando All I want from christmas is you no carro daquele entrevistador que entrevista as pessoas no carro e não a todos os outros famosos que também são fãs de outros famosos. Procurar quem ocupa o topo dessa cadeia de poderosos que admiram outros ainda mais poderosos, cortar a sua cabeça – como o rapaz gostoso que matou o CEO e, talvez com mais sorte, fazê-lo logo, e fugir depressa.

. . .

PROCUREM SABER SOBRE O MASSACRE DE CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ


Assassinaram o boi mansinho

Foi a igreja ou a polícia

Não sei disse ele

com aqueles olhos anarquistas

de quem sempre traz

tristes notícias

Disse Oswald Barroso

num vídeo que assisti

O lugar mais lindo do mundo

é o Sítio do Caldeirão


O poeta ressentido Frederico Barbosa disse

A rima é o mais besta entre os recursos poéticos

o slam é pobre em experimentação estética

Disse a professora universitária Viviana Bosi

Ana Cristina César não gostaria de slam

Os islamistas não lêem Drummond

Minha amiga Janaína Rosalen disse

Ana Cristina César é a culpada pela consolidação dos versos com letra minúscula na poesia brasileira

. . .