Blog do Juízo Original

MANIFESTO

 

pelo direito de usar a palavra

literalmente em modo figurado

literalmente a única palavra

à qual esse direito não é dado

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Por que o signo? eu lhe pergunto apavorado, pergunto tremendo pelo fato de haver existido tudo isso, de tantos entes existentes terem se engajado na transformação do mundo e nesses termos, com carros e muros de chapa de aço, e pichações, inscrições sobre os carros e as chapas de aço, por tudo isso não fazer nenhum sentido e no entanto se organizar de acordo com alguma lógica, e por que esta lógica é o que eu lhe pergunto desesperado, vulnerável, eu pergunto à beira do surto, frágil porque já entrevejo o enlouquecer inevitável, triste, eu lhe pergunto fraco, desacreditado; e ele crente ri, ele forte, ele potente me olha – ele é mesmo capaz de sustentar o olhar e rir meio ensandecido, mad hatter, chapeleiro maluco com o sorriso do gato, sorriso do coringa mais real que o ator, porque o coringa ainda é vivo e o ator se matou, o riso do coringa personagem que sobreviveu ao seu criador, que se apossou dele, assim ele olha para mim e primeiro ri, suponho eu que por seguir a honra de guerra, suponho eu que alguma parte da honra de guerra afirme que se deve prezar por alertar os inimigos com um sorriso quando se vai devorá-los, que por respeito antes disso é bem no fundo dos seus olhos que se deve mirá-los, e então sua bocona se abre, quando já não muda, vocaliza Por que não o signo?, e eu percebo que era do meu lado, não do deles, que tocava o canto fúnebre do circo.

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6 de julho de 2025

 

De fato a escrita guarda muito em comum com a guerra. Hoje me deito em paz não tenho nada a escrever. E para o dia de amanhã espero estar em festa.

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BRILHANTE COMENTÁRIO DO TOTÔ AO ÚLTIMO TEXTO

 

Não o comentário em seu estado bruto, mas a leitura que eu fiz de sua leitura. Convencer-se de que, só porque acessamos algo por escrito, podemos reproduzi-lo com mais facilidade, é apenas um daqueles muitos sacrilégios que cometemos em nome da escrita: como se uma fala fosse um mero amontoado de palavras, e não, antes, uma ação composta por forças e intenções. Li o que ele me escreveu sobre o que leu mais ou menos assim:

Amar é a cura da loucura porque, se o modo da loucura é o solipsismo, o amor não se realiza sem o exercício de uma linguagem comum. Por isso é a ponte possível, necessariamente, para um eu de si doente.

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5 de julho de 2025

 

Por que não escrever? Afinal preciso me cuidar de muitas formas. Poderia escrever “de alguma forma” mas apenas uma não seria suficiente. Quase escrevi “de todas as formas” mas todas me seria impossível, me causaria ainda mais sofrimento procurar me cuidar totalmente.

Para me cuidar suficientemente então eu escrevo. Eu que cinicamente ataquei a escrita. Ataquei para que não confundam o que a escrita pode vir a produzir com o louvor a ela como quem louva um tanque de guerra. Porque li de perto (sim, eu li) tudo o que destruímos em nome da escrita, e li muita coisa feita para destruir.

E vi muita coisa feita para destruir. Porque vivemos em meio à destruição. É preciso muita força para não ser destruído. Eu percebi isso hoje. Que não posso ser fraco não. Ontem falei para a Clara: minha irmã é meio fraca da cabeça, ela fica vendo reels de influenciador que tem o lobby da indústria do transtorno alimentar por trás e fica querendo ter um corpo irreal. Mas agora eu percebo que minha própria cabeça foi tão raquítica esse tempo todo, porque aceitei todas as ciladas que fizeram para mim. Aceitei a hipocondria, a repressão sexual, a paranoia, a mania, a ansiedade. Aceitei tudo e ainda vestia a sua camisa.

Não posso mais dizer que sou hipocondríaco. Nunca mais. Porque a cada vez que eu o disser terei aceitado o hipocondríaco que fizeram de mim. Terei aceitado algum lobby que sempre há por detrás de alguma coisa, terei sido profundamente fraco da cabeça e do corpo, de que a cabeça é uma parte. E o pior: terei feito isso vestindo a camisa, terei crido que fazia a coisa digna, nobre, bela, certa. Sou hipocondríaco, diria como dizia, buscando louros pela confissão mais honesta.

Mas, se – na mesma conversa com a Clara, eu dizia a ela também sobre como amadurecer e crescer é relativizar a imagem de uma pessoa formada a ponto de enxergar que todos na verdade aprenderam à sua maneira a viver sem enlouquecer, e que ter uma crise de pânico não me fará ficar louco, assim como todos descobrem como conviver com as próprias aflições e angústias –, então também aprenderei a conviver com as doenças.

Escrevo esse texto profundamente perturbado porque acredito que há um cravo no meu olho. Talvez terei de conviver com um cravo no olho. No pior dos cenários, terei de fazer uma cirurgia para extrai-lo ou senão ficarei cego do olho esquerdo. E? Tanta gente cega que é boa do coração. O importante é não adoecer o coração.

“É só do coração dizer não quando a mente tenta nos levar pra casa do sofrer”. O Fran não entende esses versos. Me disse que não gostava dessa dicotomia barata entre mente e coração. Já eu acredito na tremenda força das metáforas consolidadas. “Um dicionário é um cemitério de metáforas”, foi a única frase que gostei da peça média do Gregório Duvivier. Sim. É mesmo. Uma palavra, em seu sentido literal, é uma metáfora muito convencionalizada. A começar pelo próprio fato que o sentido do “sentido literal” é já uma metáfora. Literal quer dizer “ao pé da letra” e as letras não tem pé, ao menos literalmente, quer dizer, ao pé de seu próprio pé.

“É só do coração dizer não quando a mente tenta nos levar pra casa do sofrer”. Meu coração e minha mente vem se profissionalizando a cada vez mais em sua luta, às minhas custas. Minha mente encontra armadilhas cada vez mais perversas para me levar pra casa do sofrer, e meu coração dia a dia aprende técnicas de desarmá-las que são, devo dizer, muito belas. Só tenho a agradecer ao meu coração. Gostaria de acreditar que agora é a ele que minhas mãos correspondem. À minha mente não.

Desejo não esquecer essa verdade. Pois há mais esta armadilha: minha mente se recusa a lembrar das coisas bonitas que meu coração fez para nos salvar. Nos salvar: o coração é tão generoso que busca salvar até a mente, e ela é tão ingrata que prefere autodestruir-se a agradecer ao coração. Assim, esquecendo de tudo o que ele faz, a mente, tirana, espera que seja capaz de triunfar sobre o coração, despossuído. Mas a força mesma do coração vem da sua despossessão. E para que jamais nos demos conta disso nossas mentes fazem ensinar nas escolas que não se pode rimar em ão, para que aceitemos e não corramos o risco de perceber a intimidade profunda entre o coração e a condição subversiva daquilo a que lhe condenaram, a despossessão.

Para sofrer menos, então: se eu seguir carreira acadêmica, que eu o faça em nome do meu coração. Que seja uma questão de bem viver e não algum projeto vil da minha mente, alguma coisa egoísta dela de si para si. Egoísta, narcisista, capitalista, colonialista. Se escola fosse bom mesmo nos ensinariam a não rimar não em ão mas em ista. Ou pelo menos nos ensinariam a banir essas palavras da lista.

Acredito que se eu estudar conforme o meu coração sofrerei menos. Estudar porque assim manda o meu coração. Que nada mais é do que uma metáfora muito consolidada para dizer que eu devo estudar na medida em que isso faça sentido. Não devemos ficar nada surpresos se nos lembrarmos que, na equação clássica, de fato é o sensível, e não o inteligível, o que mora junto ao coração. Uma dicotomia barata, pode ser, mas tudo o que é bom na vida vem de graça.

No entanto, ao fim nos perguntamos: o quanto de mau já não foi feito também em nome do coração? Em nome do sentido e do sensível também não se justificaram quantos crimes das nações? Como no caso da escrita, é claro, só falar em coração não bastará para nos impedir ou redimir de nossa excessiva violência. A medida justa, o tom só quem o dará para mim será o meu próprio coração. A particularidade do corpo, do meu corpo, será a minha salvação. Terei de confiar nele, como agora confio na minha escrita, que, apesar de ser destro, acredito que venha dessa região próxima ao meu ombro esquerdo, em direção a ambas as mãos, e irradiando, e povoando todo o resto.

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DE UMA NOTA SÓ

 

O Tomé me disse que eu tenho uma coisa de adicto

e desde então eu tenho vontade e medo

de jogar no Tigrinho

Alguém me disse que o último livro de poemas da Adília Lopes era

[uma coleção de pensamentos

A pessoa não me disse exatamente isso

mas agora é assim que eu entendo

e acho bonito

Se eu o tivesse feito a tempo

também assim teria sido o meu livro

Mas agora já é tarde

Todos os meus versos antigos

sinto como se fossem pensamentos perdidos

Vi ontem uma influencer dizer que

embora se diga

que não se possa fazer um poema

com uma única rima

assim o fez Caetano nos versos de Cajuína

E eu concordo

Nesse momento mesmo poderia dizer que os meus ouvidos

guardam para si como que um som favorito

predileto entre todos, preferido,

escolhido

. . .

UMA CANÇÃO É UM POEMA QUE SABE O QUE FAZ

 

Se, como disse Saussure,

a poesia é a primeira ciência da linguagem,

a canção é sua mais profunda consciência

– da poesia, da linguagem

e de sua própria ciência –

e de muitas mais consequências

de sua abordagem:

sobre as quais estou muito certo

(so sure)

embora não preste para descrevê-las de modo correto

num texto escrito.

Portanto fechem essa página

– chega disso por hoje –

e me imaginem cantar bonito

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GÊNERO: CARTA DE SUICÍDIO

 

O conceito de "capital cultural" nos obriga a considerar algumas consequências do termo polissêmico "riqueza". Riqueza de quê? Pois bem, vamos agora a apenas uma dessas consequências.

Muito já se disse sobre o princípio aristocrático do deboche aos "novos ricos". E sabe-se bem que o problema do Brasil não é nem jamais será a classe dos novos ricos, dos que passaram a sê-los, mas a classe dos velhos pobres, dos que nunca deixam de sê-los:

"Abro a porta, vejo a fumaça no asfalto
O Sol me cega, eu sigo em frente
Encaro o Sol, deixo meu rastro para trás
O dia corre assim veloz
O dia corre além de nós
E eu vou me desviando das aeronaves
Que aterrissam a todo instante
Morrer já não parece novo, já não assusta
Desço a Rua Augusta a 120 por hora
(...) O Sol nas bancas de revista
E na capa da revista
Sombra, grana e água fresca
Vejo novos ricos
Vejo velhos pobres
(...) As meninas dos Jardins gostam de rap"

No entanto talvez ainda não se tenha dito tanto sobre o princípio aristocrático, em outro sentido todavia análogo, de um possível desprezo aos "novos ricos" na extensão cultural que se dá à ideia de capital: "os novos cultos". Uma questão que já se enfrentava na década de 1940 na Europa Ocidental, escreve Adorno no Fragmento 32, "Os selvagens não são homens melhores", de sua Minima Moralia:

"Entre os estudantes negros de economia política, os siameses em Oxford e, em geral, entre os laboriosos historiadores da arte e os musicólogos de origem pequeno-burguesa, pode encontrar-se a inclinação e a prontidão para associar à apropriação do que estudam, do novo, um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, pelo reconhecido. A disposição anímica intransigente é o contrário do estado selvagem, do espírito de neófito ou dos 'espaços não capitalistas'. Pressupõe experiência, memória histórica, nervosismo de pensamento e, acima de tudo, uma substancial dose de tédio. Sempre foi possível observar como aqueles que, com sangue jovem e total candura, se integravam em grupos radicais desertavam, logo que se apercebiam da força da tradição. Há que ter esta dentro de si para a poder odiar. O facto de os esnobes mostrarem um maior sentido pelos movimentos vanguardistas na arte do que os proletários lança também alguma luz sobre a política. Os epígonos e os recém-chegados têm uma angustiante afinidade pelo positivismo, desde os admiradores de Carnap na índia até aos corajosos apologistas dos mestres alemães Matthias Griinewald ou Heinrich Schiitz. Má psicologia seria a que admitisse que aquilo de que se está excluído desperta apenas ódio e ressentimento; suscita também um absorvente e impaciente tipo de amor, e aqueles que não foram arrebanhados pela cultura repressiva facilmente se tornam a sua mais néscia tropa defensiva."

Depois de uma leitura tão indigesta, é a hora de nós nos perguntarmos, em nossos corações, se também nós aceitamos apenas o ódio dos subalternos, que nos devolve a imagem de nossa própria relação com o que foi nos desagradavelmente legado; se, então, não estamos dispostos a aceitar também o amor dos subalternos, um amor de que sentimos não precisar, pois nunca se ama tudo aquilo que não precisamos jamais amar para ter.

O que se chama de capital cultural.

Se nos indagássemos no fundo de nossos corações, descobriríamos que mesmo o nosso ódio à tradição é estéril e não serve de nada. É a mais forte exclusão, é a mais perversa promessa: estabelece-se que, a partir de agora, dele só poderão participar aqueles que sequer possam a vir conhecer o que chamamos "nossa tradição" (como se por direito, mas por privilégio e, sobretudo, absoluta ignorância); pois os que, conhecendo-a, não travarem com ela a mesma relação que travamos nós — aqueles que nunca precisamos conhecê-la, uma vez que dela cremos que surgimos —, esses talvez não irão detestá-la da maneira que a alguns parece adequada, recomendada, correta:

"Os acertos dos privilegiados devem valer menos que as tentativas equivocadas dos despossuídos. Pois o privilégio paga inclusive por isso: acertos."

Não, enquanto classe, a única boa contribuição que seremos capazes de dar ao mundo é a traição ou o suicídio. Não nos termos do que achamos que deve ser uma traição ou um suicídio. Nos termos dos outros, nos termos da exigência de traição ou de suicídio que nos for feita.

O que pode envolver levar de volta todas as chicotadas já dadas:

"Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não
(...) Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão
Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação"

— Nesse caso, estaremos dispostos?

Mas, e o pior, se não só nos for preciso pagar e sofrer, isto é, afetar-se na economia do ódio, se também nos for pedido o que nunca poderíamos ter previsto: amar, nos moldes de um amor "neófito" que, pelo gesto de uma pura distinção, detestamos — também a isso estaremos dispostos?

Abrir mão do nosso "gosto", de um gosto tal que pode se dar ao luxo inclusive do desdém, desprezo ou descaso aos próprios objetos que lhe são inerentes, não: isso seria muito perigoso.

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POEMAS QUE EU JAMAIS SERIA CAPAZ DE COMPOR MAS ESCUTO EM UMA CONVERSA DE TELEFONE NO ÔNIBUS

 

Deixa disso

Ainda mais arma branca

que não tem fiança

Com prejuízo a gente já acorda todo dia

seja de dinheiro, o que for

Não vai querer adiantar a morte de um bezerro

por conta de uma dívida

Te falar uma coisa

já viu algum ladrão aposentado?

Bandido não aposenta

A gente não nasceu pra isso

Você vai e mata o cara

o cara é da facção

alguém vai comprar a briga do cara

Você vai lutar contra um exército?

Deixa quieto

. . .

 

Quais feitos

nos fará

o mês de maio?

Para quais fatos

o mês de maio

nos trará grandes

frutos?

O mês de maio 

sonha com que

feitiços?

E sua luz,

essa imensa

e tamanha luz

que maio recebe

aqui

no hemisfério sul,

nos urde quais

planos,

filhos, filmes

em segredo?

. . .

 

Não sei ser "eu" no WhatsApp. Sou no WhatsApp inevitavelmente uma estilização de "mim". A exterioridade da escrita: estou sempre "me" representando, respondendo como se eu fosse "eu", e isso é muito difícil, porra, não dá jeito, eu não tenho jeito – eu, sem aspas, sem dúvidas não tenho jeito.

Tudo que me resta é a afetação mais artificial possível de uma naturalidade (para que acreditem mesmo que nas mensagens "eu" sou eu) e três pontos que alinho num suspiro reticente (para sair logo, e breve, o quanto antes, de cena)...

E acabou o poema.

. . .

 

Tenho medo de quem não tem medo de ficar maluco,

somos possuídos por nossos próprios significados,

por acaso vocês não percebem?

Somos reféns daquilo que dotamos de sentido, 

mas vocês ficaram loucos

e se dão ao luxo de não ter a paranoia,

quer dizer o auto-monitoramento

que é relegado a fracos,

sitiados e poucos.

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SÃO PAULO

 

Para mim o poema de Régis Bonvicino

é apenas uma das muitas saídas

que sim você guarda

escondidas

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MUITO OBRIGADO

 

No banheiro de um café colombiano tocado por um casal gay na zona rural do município de Guararema, no interior do estado de São Paulo, vejo um quadro em cima do vaso. Trata-se de uma impressão barata, em lona, de letreiros esteriotipicamente estilizados: “Café”, “Hotel”, Diner”; até Moulin Rouge. Começo a pensar que estou ficando louco. Percebo que é quase sempre assim: símbolos me dão pânico. A sensação de ter que sustentar a sua convencionalização — uma vez que, relativizados, passo a estranhá-los e ganhar consciência de sua arbitrariedade — leva à minha própria percepção enquanto alguém também profundamente arbitrário, que sustenta símbolos e convenções só para si. Um esquizofrênico, ainda mais diante de símbolos do capitalismo.

Mas a minha loucura nada mais é que a minha forma de pensar individualmente o que se chama, coletivamente, de “crise existencial” – algo que acometeria a “todos os homens” no ato de tomar consciência de sua dimensão “humana”. Ora, se penso no sol explodindo não penso que estamos danados, penso que não saberei mais sustentar o peso da reprodução social da vida se tenho consciência desse fato. E logo ficarei doido.

No entanto não quero produzir um texto de lamúria, quero produzir uma intervenção. Se, de uma forma ou de outra meu destino é a esquizofrenia, permitam-me ser propositivo e apresentar-me-lhes uma solução. Meu medo metafórico da loucura é também literalmente louco porque é um problema do qual sua lógica não permite saída: sendo uma problemática propriamente particular da minha ficção individual, não posso sair dela por qualquer concepção também individual. Nem, tampouco, do “coletivo” pensado por sua vez ele mesmo como um organismo colossal mas ainda unitário, todavia me é possível fugir desse esquema pela relação, pela participação, pelo compartilhamento. 

Assim agradeço a todos aqueles que são a condição necessária para que eu possa viver sem enlouquecer e encerro por aqui o meu lamento.

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DE VOLTA AO CHILE

 

Sinto saudades do Chile como quem sente saudades do futuro. Porque o Chile é o país do futuro. Não como um slogan, não como quem põe fé no progresso da evolução – pelo contrário, porque o Chile foi laboratório do neoliberalismo nos anos 70 e imagino que, após o capitalismo acabar consigo e com tudo, repovoaremos o mundo um pouco como os chilenos repovoaram o Chile. Sinto saudades do Chile porque se lembro de lá sei que a terra arrasada há de ser no entanto também uma terra reabitada, assim como quero muito acreditar que, apesar de seu fim, ainda será possível viver no mundo.

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IMPRUDÊNCIAS

 

Imprudentemente

pedi para a atendente descartar meu bilhete único antigo

com quem eu tinha tantas memórias boas

Imprudentemente eu voltei a escrever poemas

sem ter voltado a ler poesia

não tenho mais uma técnica do verso agora

Não sei se sequer tenho uma técnica de vida

que fosse capaz de me inserir entre os naif

como um artista

Embora tenha meu bilhete único novo

com quem eu tanto me empolguei que

imprudentemente

me livrei de um grande amigo

Meu companheiro lindo

aquele cartão não me saía do bolso

agora num saco de lixo

jogado entre outros

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ALGUMAS OBSERVAÇÕES

 

Ninguém fala em prosa:

uma fala é um fragmento

que lembra mais um verso,

um epigrama, que um parágrafo

Eu tenho estado sozinho

tenho pensado mais do que falado

e isso me tem jogado para a prosa

(a prosa é um discurso solitário)


Esse poema mesmo não surgiu para alguém

Surgiu no oco da minha cabeça louca

Por isso me desculpem essa sonoridade assim meio torta

rimas óbvias para orelhas moucas

. . .

Anteontem sonhei que fazia sexo oral na minha avó


Tenho tido dificuldades com os sonhos. Não é nenhuma dificuldade especial com o sono. É que, por força de leitura, acho que me convenci do animismo, me convenci de que tudo funciona com base numa certa lógica do espírito, quer dizer, do esprit francês, tanto da mente quanto dos fantasmas. Sonhar para mim não é desligar meu pensamento. Quando sonho penso demais e sem fronteiras e isso me custa muito, é algo que me cansa, me perturba. Hoje, enquanto delirava em vigília, pensei mesmo que isso pode se dever à alucinação inevitável que sofre uma cabeça tão ativa quanto a minha quando fecho os olhos, com a ação motivada daquilo tudo que apresenta resistência ao consciente. Pensei isso em vigília. "O onirismo psicótico caracteriza-se pela perda da distinção social entre alucinação e realidade", diz o google. Se eu sustentar algo que pensei em vigília terei me tornado um psicótico? De médico e louco todo mundo tem um pouco.

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NUNCA SE PODE FALAR DE MÚSICA E DE CINEMA

 

Andava refletindo no meu último banho sobre esta escolha que todos nós, hipsters de classe média, temos que fazer, por volta dos 20 anos, entre uma predileção pela Música ou pelo Cinema e, de repente, me peguei pensando na escolha que temos de fazer, nós, aqueles que se prometiam a vida de escritor, entre a vida e a escrita. Não me arrependo de ter escolhido a vida. No entanto restará sempre aqui o que de outro modo poderia ter sido.

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