Certa vez disse para alguém que eu e Totô temos uma amizade romântica. Eu completei: não no sentido amoroso; eu e Totô pintávamos juntos aos 15 anos, acreditávamos estar no caminho de qualquer direção artística certa, trocávamos email sobre o que líamos e líamos muito, não tínhamos celular, a gente não tinha rede social nenhuma, nossa estética era romanticamente tanto moral quanto ética, e começamos a escrever também poesia juntos, de tal forma que até hoje somos como que um dos únicos leitores um do outro. Além disso, havia – e quanto a isto ainda há – qualquer coisa de um gênio romântico: nossas brigas intempestivas, nossas crenças resolutas que já nos fizeram romper e reatar umas três vezes, acredito. Totô não passa cinco minutos sem que se irrite profundamente com algo que digo, e eu, que sou mais paciente, até que consigo se não passar de sete.

Portanto sim um tanto de sentido amoroso. Aliás quando tínhamos 16 anos houve até uma noite em que ele quis me beijar um pouco.

Hoje ele tem uma namorada taiwanesa gata. Ontem lhe mandei mensagem dizendo que gostaria que eles fossem os padrinhos do meu primeiro filho. Espero contrapartida: eu sempre disse que adoraria ter filhos de olhos puxadinhos.

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POEMAS SÃO COMO LISTAS


De versos

os poemas são antologias


Tenho aprendido a aceitar

a poesia confessional mas

também o ódio à poesia confessional

Sob o signo de Confúcio

tenho me tornado mais brando


Há diversas coisas

que se produzem como poemas

Há muito preto no branco

de uma página que não é poema

e não há problema

Assim como nem tudo é preto no branco

Assim como é difícil de reconhecer como verso uma linha que se extenda

tanto


Diversas coisas

recortadas

pelo branco da página

nos comunicam

São como yinyang

são como listas

Hoje antes da análise

na antessala sobre o caderno

eu escrevia:


Encerramento

briga com pai

vontade de falar de outras coisas

produção de diferenças

pessoas mais velhas

Provas

fim do semestre

tranquilidade

animação

Gabe

amigos o tempo todo

trocas

me ver como branco

me ver

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ENCARTE DE "JOAO GILBERTO EN MEXICO" (1970)

 

Esse disco se deve a Mariano Rivera Conde. Vim passar dez dias no México e encontrei Mariano, que eu já conhecia muito, por procuração (via Antonio Prieto). Mariano me convidou para fazer um disco com ele, da maneira mais hospitaleira. Fui ficando, de repente estava morando mesmo. Fiquei mais de um ano, o México é uma maravilha. Ouvi galo cantando no meio do dia, da tarde, de madrugada, de noite – há quanto tempo eu não via isso. Gato, galhinha, carneiro, pato, papagaio, onze perus, cachorro, tem uns onze; é tudo de um senhor que mora aqui embaixo, no barranco. Ainda tem duas filhas, dois filhos e uma porção de netos. Um dia ele matou um porco e dividiu entre os vizinhos todos. Disse que é para se fazer assim.

Oscar Castro Neves chegou de Los Angeles, tirou os sapatos, alugou um piano, pendurou o som, ficou feito uma luz. Parecia a estrela dalva que daqui se mira.

Chico Batera desapareceu. Não tirou os sapatos e disse que não ia pendurar nada, não. Aí, fez os sons de percussão com José Luis Ferra "La Manja". No fim, eu dei um pedaço de bolo a ele. Ele ficou calado, comeu e começou a engordar. Depois, ficou magro de novo. Aí, ficou assim o dia todo.

Manuel, da cabine de seu avião, comandou a turma do som - Roberto, Bernardo, Rico - com toda boa vontade e amor.

Mariano, um grande amigo, das melhores pessoas que já vi.

Eu quero que esse disco dê um abraço no bonfá em todos os meus amigos.

Minha gratidão e um grande abraço ao Dr. Pedro Bloch.

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QUANTO AO CINEMA

 

De tal forma o reconhecimento das grandes virtudes de algo responde a seus grandes vícios que, na verdade, o movimento é um só: do seu ponto forte se faz seu ponto cego, e o contrário. Fernando Pessoa o compreendeu melhor que ninguém. Porque Campos é tão metafísico, verborrágico: é tão infinito, mas tão limitado. Por ser Caeiro excessivamente didático que é pernóstico e humilde, é um idiota e um mestre. Na sua aristocracia, Soares encontrou aquilo que procurávamos tanto e que tanto precisamos condenar. Mas apesar da filologia pessoana, não considero sua obra incompleta e sim aberta. As posições trocam-se, sempre, estão sempre transformadas: é como se Caeiro, Campos, Soares, Reis, ao mesmo tempo, estivessem inacabados e continuamente a se referir, a se reescrever, a escrever Pessoa — de novo. Tanto nunca quanto para sempre.

Depois de comentar um autor tão grande me meterei a me comentar. Não sei se será ironia ou heresia. Me basta que essas palavras rimem.

Também pela implicação recíproca enxergo qualquer coisa como a minha poética. Poética – não no sentido da obra do livro do autor – no simples sentido próprio ao que faço, e como vejo as coisas. Meus vícios poéticos são virtuosos, minhas virtudes poéticas são viciadas. Longamente poderia aqui arrolar várias. Por exemplo essa minha maniazinha provocativazinha polemiquinha, que é chucra e eu não abro mão. Se da brincadeira vem contigência, vejo vindo também necessidade.

Ou que seja isso de eu não gostar de cinema, sem dúvidas. É uma virtude: ignoro a sétima arte, a mais moderna. Ignoro a sétima arte, a mais moderna: a frase por si dá conta de denunciar à sua vez meu tremendo vício.

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ADEUS MAIO


Dizem a poesia salva

A minha condena

Não sei se porque

não é poesia

mas condena

Ou apenas porque

sou polêmico

condena

Mas sei não não é

apenas a minha

Nunca a poesia

salva todo poema

condena

Não acreditem

no que lêem na internet

crianças no que lêem

nos livros adultos

Isso de que a poesia salva

é o verdadeiro problema

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QUANTO À LOUCURA

 

O pensamento ao se imitar nas coisas não é um degredo em relação a elas, mas a nossa forma de participar delas, de estabelecer uma relação possível com as coisas. O meu pensamento, por se imitar no mundo, não é um exílio do mundo, pois é, antes, um encontro com ele; é — antes ainda — o mundo. Não sou eu que me espelho nas coisas, é o mundo que, matéria da qual se forjou meu espelho, espelha-se em si. O meu pensamento está no mundo e nas coisas, é mundo e coisa entre as coisas — é do mundo e das coisas. Foram eles que me deram essa forma muito específica de imitá-los (isto, é de pensá-los) que, antes de ser restrita, é a única condição de liberdade: definida não mais como isolamento, e então como pertença.

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NENHUM POEMA

 

Em maio: só um poema. Maio foi um mês de muita escrita acadêmica. O preço pago foi o silêncio da fala que irrompe sobre os poemas. Escrevo poesia porque gosto demais da sensação de falar. Mas, quando escrevi um poema sobre o melhor dia da minha vida, em novembro, eu preferi o silêncio. Porque ganhava algo fundamental: não quis descrevê-lo. E eis que hoje é um dia em que algo se perdeu. Porque perdi algo fundamental: não posso aqui retê-lo.

Tão somente então reapresento a seguir um trecho do poema em que não representei.


o dia que não coube no poema

o dia que o poema não conheceu


o dia deitado para fora da página

o dia feito em pé contra o verso do poema

mas mais falido do que fálico

sem a falácia de um poema


o dia: não

um dia: meu

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PARA O TÉO


Não sei se a poesia é filosófica. Sei que a Filosofia é um discurso paranoico e que a paranoia é um estado de sítio contra toda e qualquer contaminação. Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final, e sei também que o poema é o discurso contaminado por excelência. Absolutamente, tanto quanto qualquer discurso contaminado será poético, no sentido não-grego e anti-etimológico da palavra poeta: onde se descobre na coisa o que não é da coisa. Definir o signo em termos de significante e significado é defini-lo, mais que a partir de sua identidade, a partir da sua alteridade. Por isso vou me lembrar do sensível e inteligível de Agostinho e chamar o signum simplesmente de um sinal que aponta para o outro. Os sinais em rotação seria um título menos aurático, mas de fato mais poético: de repente, me imaginaria em meio a uma rotatória na saída da Rodoviária de Belo Horizonte, quando os meus olhos batessem com a sua lombada na estante.

A Filosofia, que é tão paranoica, tem muito a aprender com a poesia. Eu, que sou tão hipocondríaco, sem dúvidas tenho muito a aprender com o desejo de contaminar-se da poesia. E a poesia — que pode até não ter o que aprender com a Filosofia ou comigo: ela quer mesmo assim. É o seu jeitinho de ser.

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REDESCOBERTA DA LÍNGUA

 

Aquele bardo baiano havia já entendido o prazer orgânico da língua quando cantou "ele me deu um beijo na boca e me disse", e, dois anos depois, "gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". Ou, em termos técnicos: tinha entendido a intersemioticidade das linguagens do beijo e da fala. Ou, em termos práticos: cala a boca e me beija.

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MENINAS MALVADAS

 

Meninas mimadas,

meninas tatuadas,

meninas graduadas,

meninas não tão descoladas,

mas meninas convencidas

que são; meninas

finas desafinadas

que não suportam cantadas

de caras que não são como

essas meninas tão claras

e tipo super bem chatas

— essas meninas malvadas

que não fazem questão,


amor, hoje não.

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DEMAIS A ARTE E A POLÍTICA


Brasil uma desordem

às ordens da Casa

uma despesa

na dispensa às custas

da Senzala

um princípio de lógica

que ordena

controla organiza

e mata


& o Samba


e a Argentina isso

& o Tango

o Uruguai Candombe

os Estados Unidos

isso & o Blues o Soul

o Jazz e mais tanto


Não importa se a arte salva. O que importa é que ela não basta. & porque a poesia não pode ser santa, com prosa didática

é que se termina

essa página

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SE TU SOUBESSE COMO EU NÃO SOU CUIDADOSO

 

Não tomo cuidado com,

o que me faz

muitas vezes insensível

Mas eu tomo cuidado de

– não sou cuidadoso

mas eu cuido


Por isso às vezes escuto

você é muito sensível

Miguel

e arrepiando

ao dizer vocativo do meu nome

fico mudo

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DE CIRCUNSTÂNCIA

 

Era uma vez

não tinha no mínimo 94 anos

nem tinha no máximo 94 anos

um curitibano nos mostrou

como admitir ambas as sentenças

e então voou para outros planos

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O longo século XX

de Arrighi


O curto mês de abril

do Miguel


O amor ao verso

Um vídeo de um homem


pulando na piscina

em looping reverso 

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EU

à Gilda/ a Rousseau 

Amo minha caligrafia.

Eu amo minha relação errada

com os livros de Antropologia:

como se fossem manuais de ética,

como se eu descobrisse

que os Chinook o fazem

e de repente também quisesse

casar com a minha tia,

como se simplesmente

por serem diferentes

os Yanomami soubessem mais

sobre a vida, como se

eu me cristianizasse para seguir

o exemplo santo de Maria.

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OBSESSÕES

 

Sim

no Blues interessa

o que não é blues

no canto gregoriano

o que não é canto gregoriano

etc

Há entretanto exceções

obsessões

pudera

em Ella Fitzgerald

apenas o que é della

me interessa

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NEM TUDO TEM TÍTULO

 

Nem um olhar

nem um beijo

vale mais que mil palavras

Nenhuma palavra

vale nada


Nem sempre dá

ou se quer sustentar

uma teoria da palavra

que o valha

. . .

 

A caligrafia da palavra

Amor


Para mim o fato do concretismo

ter construído sua teoria visual

em torno da letra impressa

deixar claro

que há mais de propaganda

que de poética


A língua —

para mim o corpo

Para o meu corpo

Para eu tatuar não o seu nome

mas a sua letra

na íris do meu olho


Por ser essa linha

uma extensão da sua mão

Para eu lhe estender a mão

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QUANTO AO MEU ÚLTIMO POEMA

 

A religião material da concretude também é uma forma de transcendência. Ela também busca religar-se com etc; ao que parece, a ligação com uma puta duma propagas do Washington Olivetto, méo. Não faço questão de uma poesia com experimentação de linguagem. Não tenho o último modelo do IPhone 15. Nasci em São Paulo, mas sei de extensões continentais e insulares. Ouvi falar de outras intenções, também. Para mim me basta uma poesia significativa, me basta se tiver significância.

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