RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA


Pela minhas bisavós

que eram analfabetas

pela minha mãe

que foi neta delas

devolvei à música

o que é da música


Tirai da folha a tintura

deixai a canção em paz

deixai o livro em página

deitai fora vossa roupa

e vamos à praia

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O NATAL SÓBRIO DE 2024, UM NATAL SEM ÁLCOOL

 

Esse ano não gostei do natal. Não foi um dia mau. Pelo contrário: por mesmo em sua plena realização ter permanecido tão mediocre, é que o natal se revelou para mim uma data sem nada de especial. Ou talvez porque eu tenha ganhado dinheiro apenas. Não houve troca de presentes. Ganhei três envelopes com dinheiro e não dei nada a ninguém. Minha prima ganhou três brinquedos, ficou muito contente. Que me perdoe a criança que eu fui, mas aquela felicidade estúpida para mim só tornou isso tudo ainda mais banal. Quem te deu esse presente, foi o Papai Noel? Não, mãe, foi o papai. Ela sabia de tudo. Jamais ser condescendente com qualquer criança. Elas entendem tudo. Hão de entender que essa data que poderia ser bela murchou, tornou-se vã, estúpida, medíocre, mais ainda do que muitos adultos. A maior beleza será enfim aceitar o fato inevitável de se reconhecer, esse de sua triste decadência, quando amadurecermos e já tivermos esquecido a candura que na verdade nunca chegamos a ter sequer em nossa infância. Mesmo porque a lição de Jesus Cristo é estéril. É preciso jamais perdoar. Não perdoar a nada, não nos perdoar pelo que somos, não perdoar o natal pelo que se tornou, não Roberto Carlos, não o amigo secreto da Rede Globo, não a sua reportagem que meus avós acabam de assistir sobre o reisado que o apresenta na forma suave, inofensiva, burra, não perdoar Clarice Lispector pela forma como tratava suas empregadas, por ter escrito cartas à sua irmã sobre "como domesticá-las", não o pop e a definição de pop como "gostar de gostar", não a Selena Gomez cantando All I want from christmas is you no carro daquele entrevistador que entrevista as pessoas no carro e não a todos os outros famosos que também são fãs de outros famosos. Procurar quem ocupa o topo dessa cadeia de poderosos que admiram outros ainda mais poderosos, cortar a sua cabeça – como o rapaz gostoso que matou o CEO e, talvez com mais sorte, fazê-lo logo, e fugir depressa.

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PROCUREM SABER SOBRE O MASSACRE DE CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ


Assassinaram o boi mansinho

Foi a igreja ou a polícia

Não sei disse ele

com aqueles olhos anarquistas

de quem sempre traz

tristes notícias

Disse Oswald Barroso

num vídeo que assisti

O lugar mais lindo do mundo

é o Sítio do Caldeirão


O poeta ressentido Frederico Barbosa disse

A rima é o mais besta entre os recursos poéticos

o slam é pobre em experimentação estética

Disse a professora universitária Viviana Bosi

Ana Cristina César não gostaria de slam

Os islamistas não lêem Drummond

Minha amiga Janaína Rosalen disse

Ana Cristina César é a culpada pela consolidação dos versos com letra minúscula na poesia brasileira

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RELATO DE VIAGEM


Ñuñoa, 15 de nov

Certas coisas parecem que vão se desmanchar se forem sopradas. Parecem não pertencer a tempo algum: um efeito, elas próprias, de um vento anterior que veio depositá-las onde hoje estão. Assim a temporalidade incompreensível de uma casa tupi feita de folhas, primitiva não porque está aí há muito tempo, e senão porque é como se nunca pudesse ter estado ali. Ou uma cidade, isto é um assentamento, com história de tipo moderno, data e feriado de fundação, como Santiago, que entretanto parece ter sido construída como uma aldeia nômade. E como se eu pudesse imaginar muitas intersecções possíveis entre a história da sociedade chilena e da sociedade americana, e no entanto elas não fossem necessárias diante da evidência estética de que são dois países feitos de brinquedo. Mas há brinquedos e brinquedos, e há os menos lúdicos e mais violentos, e, melhor, há parques e parques de diversão, e como esse há os sem diversão. Nem todos desse último tipo inclusive apontam para o céu como Disneyland. Talvez exista um aqui todo feito de poeira do chão.


Valparaíso, 16 de nov

Ficamos pouquinho aqui na Ilha, mas deu pra entender tudo, seria possível dizê-lo não enquanto um imbecil? Desde que se dissesse isso sobre o Chile. Quando se entende que não há o que entender, quando o lugar não se revela por meio de um mistério impenetrável e tampouco não revela. Um lugar nadificante; eu, que não sei nada sobre o Chile. Que li um livro do Roberto Bolaño sobre o México e outros contos dele no avião. Que, sobretudo, e não como ele, nada acredito em algo como a alma das nações. Não, eu me recuso a tratar como ser essas coisas que gostaria que nunca tivessem vindo a existir e talvez por isso mesmo não existam. Um lugar nadificante, mas um nada capaz de assumir múltiplas formas em Valparaíso. Foi decerto o resultado acidental de uma experiência sci-fi bizarra com os Studios Ghibili. (O metaverso tem que acabar.) Pode ser que o parque de diversões sem diversões que o Chile me pareceu – Travel to someplace else than Argentina, Argentina is the most boring place in Latin America eu disse a uma gringa residente por aqui, e ela It is your first time here in Chile, isn't it? –, pode ser que fosse um parque temático dos Studios Ghibili. É coisa do Pacífico. Neste parque além-mar o acesso daria-se apenas por botes de luxo, para a experiência japa mais exclusiva possível aos turistas americanos. No meio tempo, esse tempo que sempre rompe antes do tempo – e antes também porque precisamente só pode surgir depois do fim, quando acontece de se poder ver as metades, o meio das coisas, porque está depois do fim e antes do começo –, Valparaíso saiu estranhamente desse projeto que não existia mas que em algum lugar devia de existir, e por isso mesmo deu-lhe vida, e essa estranha forma de evocar a Alemanha no Pacífico Sul é hoje a fantasmagoria de um desenho animado. Belíssima, por sinal, das partes mais às menos apocalípticas, partes como os paseos dos cerros Concepcion e Alegre que não sei onde encaixar nesse polo de maior a menor. Brinquei com as meninas: peça ao Chat GPT que te faça uma imagem em que Campos do Jordão seja uma favela litorânea e obtenha isso daqui. Riram bastante. Inclusive a gringa que não sabia o que era Campos do Jordão. Não acho que estou sendo severo demais. Valparaíso é linda. Nada do que eu escrevi contradiz isso. Não estou sendo irônico, nem mesmo agora, e não há nenhuma ironia em reafirmar isso. Sabe disso quem sabe da beleza rara das coisas esquisitas, o de la belleza esquisita de las cosas raras. Tanto quanto, na tradução, essas quatro palavras trocadas. Ainda mais quando uma cidade tão pitoresca quanto essa possa ocupar tantos hectares de montanha diante do mar, porque as cidades portuárias nunca abandonam, nem mesmo sob o jugo mais cruel do implacável Império Hipster, sua missão inaugural. Valpo, será ainda assim quando os zumbis vierem nos atacar, ou foi assim que ficou depois de seus assaltos finais?


Valparaíso, 17 de novembro

Ontem não escrevi sobre o éx-carcel dessa cidade, o maior de toda ditadura chilena. Na minha versão pós-realismo fantástico, que seria denunciada justamente como capitalismo fantástico, o parque não cabia. A sobriedade que lá se encontra desafia toda fantasia. A sobriedade de lá, ela apenas: não acho que os cerros de Valparaíso sejam menos sóbrios ou menos violentos, mas são as pedras molares dessa versão e não quem as derruba. Já o éx-carcel de Valparaíso é radical. Existe para lembrar, radicalmente, lembrar a todo custo, mesmo contra o esquecimento azul do céu sob e o oceano diante do qual se encontra. Hoje, também assim contra o mar, vi, alguns quilômetros ao norte, em Punta Pite, os desenhos de Teresa Moller, embora o mar seja pouco importante por lá. Toda atenção se concentra nos recortes retos da artista contra o rochedo. Nem tudo que é torto é errado, é verdade, e Deus escreve certo por linhas tortas. E sem dúvidas nem tudo que é reto é certo, pero que hay los rasgos derechos que son corectos, los hay. Menos de sua disciplina, da sua clareza ou ordenação que das sendas que abrem; não dos caminhos, mas das fendas. Quem sabe, se perseguíssemos essa ideia até o final, como hoje andamos atrás de seus passos, descobriríamos que a geometria não só não pode disciplinar como não pode ser uma disciplina, nunca, somente uma faculdade. Nunca uma filosofia ou uma metafísica universais, e sim os regimes de tradução possíveis para muitas particularidades. As retas não se equivalem entre si: um círculo é um círculo, uma pessoa é uma pessoa; e no entanto de que círculo ou pessoa falam? E, no entanto, não se pode trilhar pelas pedras de Teresa Moller até o final. Voltamos, como de costume, pelos mesmos riscos. Acredito ainda mais que ela escreva em algum tipo não florescido de língua. Aquilo só pode ser escrita, se a escrita toca as coisas pela superfície, e suas linhas exigem que se ande por elas para que sejam lidas. Enquanto, eis o esquecimento na e da escrita, nos esquecemos do mar. Que séa un sitio de memoria: acuerdate del mar.


Santiago Centro, 18 de novembro

1. O melhor x-churrasco do mundo é feito pela Confitería Torres, em Santiago do Chile. Apesar disso, não se chama x-churrasco. O melhor x-churrasco do mundo é chamado pela sua comunidade de Sandwich Barros Luco.

2. Ramón Barros Luco foi um presidente chileno da década de 1910 para quem se inventou – mais do que quem inventou – o sanduíche, a despeito do que devem escrever os manuais gastronômicos da cidade.

3. Não há como inventar o que já existe ou poderia existir. Eu poderia dizer nada se cria, tudo se copia. Ou eu poderia escrever que o que virtual é real mesmo sem ser atualizado. Ou, pelo lado avesso da moeda, lembrar que se nada se perde e tudo se transforma, então que nada surge do nada. E assim eu poderia concluir que o Barrios Luco é uma versão da série múltipla do x-churrasco. Nesse caso, diríamos – a despeito dos manuais gastronômicos da região – que o sanduíche foi transformado por Barrios Luco, ou, melhor, pelos cozinheiros da Confiterria Torres.

4. Se não se pode criar e sim transformar o que já existe, infelizmente ainda se pode patentar uma dita criação. Um sanduíche de filé mignon com queijo não pode ser criado, pode variar e infelizmente pode ser patenteado com o nome do presidente que exigiu a nova versão para os funcionários desta confitería.

5. A metonímia sobre a metáfora: as coisas emprestam os nomes daquilo que lhes pomos ao lado. Entre as palavras, reina a contiguidade.

6. Entre os sanduíches reina a verticalidade.

7. A Confitería Torres funciona desde 1879. Não sei o que lhe dá sua continuidade. O lugar, decerto, a família de proprietários, talvez. Nunca terá sido vendido? Um contrato de venda do estabelecimento garantiria a continuidade, quem sabe. Mas como, a receita? Uma receita secreta de x-churrasco. Não me parece verossímil.

8. Um pão macio e crocante, tostado por dentro e por fora. Um filé suculento, mas fino, igualmente macio, e bem temperado. Queijo derretido, quase doce. Servido muito quente.

9. Em Concón, há uma empanada tradicional de pino de locos, um marisco da região. Quem lhe guarda a patente é o Empanadas Fritas Las Deliciosas. Quando chegamos, as empanadas de pino de locos haviam acabado, então fomos ao Restaurant La Perla del Pacífico. Nem sempre a patente é a melhor pedida. Não provamos as do Las Deliciosas, mas as do Perla del Pacifico estavam divinas.

10. O Mercado Central de Santiago é fake feito pra turista. Terrível. Os mercados La Vega Central e La Vega Chica são bem roots, típicos, tradicionais. Terríveis igual.

11. Em Valparaíso, um italiano faz em sua cafeteria um excelente tiramisú e tão boa quanto torta della nonna. Pensei que a receita dessa torta de creme de confeiteiro, limão, nozes e amendoim fosse da sua avó, algo como uma patente familiar. Mas é uma receita tradicional italiana. A Itália lhe guarda a patente, embora uma nonna seja uma coisa de carne e osso e a Itália não tenha nonna, muito menos corpo.


Santiago Centro, 19 de novembro

Ao acessar o segundo andar do Museo Chileno de Arte Precolombino, mal se lê, inscrito na pedra de um monumento logo à frente da porta, uma frase em que o fundador Sergio Larraín Garcia-Moreno afirma que, das artes de todo o mundo, sempre foi a dos povos primitivos a que mais lhe comoveu. Sua noção de arte precolombina é uma versão aborígene da arte sacra que está vinculada com a mesma institucionalidade estatal de uma igreja. Eis que o filme da Disney é A Nova Onda do Imperador e não A Nova Onda do Chefe Contra o Estado. Nessa coleção a arte indígena é, tem de ser, a arte das grandes civilizações, expressão que mesmo os textos curatoriais conservam para descrever a complexidade e superioridade cultural das sociedades andinas e mesoamericanas. Das sociedades que se encontram ou um dia se encontraram no que hoje é o Brasil, por exemplo, há duas urnas marajoaras. Então que estranhamento descer ao piso inferior, onde está a exposição Chile antes de Chile. Como o museu de arte sacra do Vaticano organizaria uma exposição arqueológica da Roma Antiga? Pois é. Nesse piso exibem-se cerâmicas em série com legendas e placas tímidas, como pedindo desculpas por não terem sido grandes sociedades a se admirar de verdade aquelas que o estado chileno exterminou. Mas o Estado só enxerga relações estatais; aonde quer que olhe não suporta o que não for hegemôneo e homogênico. Quem diria, gostei muito mais do Museo de la Memoria y de los Derechos Humanos. Mesmo com sua visão pacífica da democracia, penso que ainda assim ali há mais interesse pela diferença. (Embora quase não fale do genocídio indígena durante a ditadura. Quem quer falar dos Mapuche? Não. É sempre necessário antes se comover com dois estudantes universitários estuprados e desovados. Eu mesmo sou culpado e me comovo muitíssimo.) Saio chorando dos dois museus, que fui visitar sozinho. Ninguém quer saber dos Mapuche. Ninguém quis vir comigo.


Vitacura, 20 de novembro

Paga-se muito caro para geralmente se comer não tão bem. Um país nos conquista pelo estômago. E pelo bolso. A que pese a Santiago, apenas em terceiro lugar vem cordilheiras ao fundo, isto é, sua paisagem, quer dizer, nos conquista pelos olhos. Fora que não tenho sentido especial atração por quem vive aqui. Mas isso é bom: não sentir tesão é um bom seguro contra frustrar-se e sentir-se melancólico. Não sei se estou falando do Chile. Acredito que nunca cheguei a falar do Chile. Que Chile? Crianças, na próxima frase tentaremos falar sobre o Chile. A situação do seu transporte, mais precisamente: não há cobradores, mas uma catraca ao lado do motorista, por isso os estudantes me ensinaram a dizer buen día, pedir permiso e então pular a catraca. Inicialmente pensei que pudesse se tratar de uma desobediência civil silenciosa, como se os motoristas da cidade toda assentissem e se fizessem cúmplices do movimento estudantil pelo passe livre que, anos antes, produziu o estalido social. Ou, então, pelo contrário, poderia ser porque o Chile é provavelmente, como me parecia, o país mais europeu da América Latina. O bom dos europeus é que, contanto que você não se meta na vida deles, eles não ligam, me disse o Chico em Portugal. Talvez os motoristas simplesmente não se importem com os pula-catraca. No entanto percebo como meu escândalo é mais psíquico que sociológico. Eu, tantas vezes mesquinho e anarconformista, me surpreendo com gente que não exerce seus pequenos poderes. Embora também nunca fizesse cumprir as ordens com as quais não concordasse, quando eu mesmo trabalhava em uma instituição. Mas é que no Brasil se paga pela passagem e mesmo assim pode-se ouvir alguma bronca do cobrador. E eu não tenho nenhum compromisso com a defesa do Brasil. Gostaria de rever o que escrevi antes. Santiago não é uma cidade fantasma, eu que sou o fantasma. Por isso vaguei, evadindo suas catracas do Barrio Franklin até este café na Municipalidad de Vitacura, onde pago por este pedaço de torta os mesmos que lá paguei pelo almoço inteiro: seis luca. É uma casa deliciosa em Vitacura, com jardim, piscina, ela me disse com ternura. Mas também pode se dizê-lo com cólera.


Santiago Centro, 21 de novembro

Curso de viagens. Oficina número nove. Em países tediosos, ande muito, vá a todos os lugares, experimente todos os cromatismos do tédio. Não há apenas o tédio cinza; aliás, entre os tons de tédio o cinza é apenas o mais óbvio, vulgar. Também há tédios azuis, tranquilamente poderia se dedicar uma tese de capacitação técnica ao tédio roxo, y por qué no al rojo?, à intensidade cega de um tédio amarelo. Não o verde. O verde é uma cor que jamais pode ser monotemática. Uma observação: evite pagar pelo tédio. Em países tedioso nada que é caro vale a pena. Entre as nobrezas particulares a cada emoção, a que exibe o tédio é justamente ser universal e gratuito. Universal no sentido burguês da coisa, é claro. Evite pagar pelo tédio desconsiderando que pagou um vôo para chegar à cidade de Santiago do Chile, em seu tempo livre. Assim tenho me considerado um escritor chileno. Tomo notas sem parar. Embora não esteja realizando nenhum estudo. Embora tudo seja estudo. Escrita não: nem tudo é escrita. A escrita precisa da reescrita, senão é como desenhar, é outra coisa. Sem juízo de valores: eu mesmo prefiro os desenhos à escrita com sua qualidade distintiva de reescrita. Por isso deveria tornar-me desenhista? Discordo. Seria como responder a quem reclamasse de um pênalti perdido do Neymar, então faz melhor, à maneira dos adolescentes. E o Neymar é um imbecil. Diferentemente do que pensam os adolescentes. Olha que eu desenho bem. Olha, forma iminente de loucura a escrita, se além do trabalho obsessivo com a linguagem, a reescrita, a escrita ainda requer que se imagine um interlocutor com quem conversar, olha. Isso porque escrevo em meu diário. Limitações da língua, sempre em busca de um outro alguém, e ainda bem. Afinal por que cantaríamos as canções enquanto as ouvimos senão pelo prazer articulatório envolvido na percepção da fala? Já que é assim gostaria que o interlocutor imaginário respondesse a essa questão que me surgiu subindo o Cerro Santa Lucía. Charles Darwin subiu lá e descobriu a origem das espécies. Imagine se lá descobríssemos a origem da canção?


Recoleta, 22 de novembro

A dimensão demiúrgica da palavra Miguel. Miguel é um nome ou uma palavra? Não sei. Algum Miguel escreveu seu nome, essa palavra, em uma parede do Museo de la Solidaridad Salvador Allende onde cada visitante deveria escrever a palavra resistência. Junto a uma vez a palavra arte e outra a palavra amor, são as únicas inscrições que desobedecem a proposta. Vi a parede há poucas horas, mas um Miguel o fez há pelo menos dois meses; quando a Clara visitou o museu pela primeira vez, já tinha lido esse nome por lá. Todos os miguéis que conheço seriam capazes disso. Eu não me envergonho. Um nome é um destino. Em hebraico, mikha'el é quem é como Deus. E Santiago é algo como a Terra Santa. Da rua Palestina se vê o Cerro San Cristobál como o Monte Sinai. Não sei o nome do monte sinai em árabe. Me envergonho mais disso que do nome Miguel na parede da resistência, onde eu mesmo poderia muito bem tê-lo inscrito. Só agora pesquiso e vejo que é Jebel Musa. Pela migração devido à semelhança com a Cisjordânia, em Santiago encontra-se a maior comunidade palestina do mundo fora do Oriente Médio, que talvez em não muito tempo se torne a maior comunidade palestina do mundo. Escrevo isto na Panadería Fufu, depois de comer um knafeh que a Clara chamou de pornográfico. Ela tem dito muito isso sobre os doces chilenos. Os bolos aqui são pornográficos, aquele kruchen era pornográfico, me pergunto sobre o que ela gosta na cama, mas deve envolver açúcar e derivados de leite. Ou então algo excessivo. Sim, envolve algo que seja demasiado, com certeza.


Providencia, 23 de novembro

Tenho pensado muito na gente morena do México. Que eu jurava que se viam como índios e reivindicavam isso. Ou que eram vistos como índios e sofriam uma violência que mobilizava isso. Mas não. Ponto para os afropessimistas, no México não se odeia a gente por ser descendente de indígena e sim pela sua cor escura. Y eso no se da igual. Clara: Yo habia dicho a Pedrí que los chilenos son muy simpaticos, el me contesto que es solo porque soy una chica guapa. Pero conmigo son igual simpaticos, eu respondi, y yo no soy una chica guapa. Sí es que eres una chica guapa, falou a Sthefany. Que é mexicana. Não é verdade que aos olhos dos gringos não somos brancos e sim todos latinos. Na Península Ibérica, em Portugal ou na Espanha, perguntam a mim e à Clara se somos italianos ou franceses. Sou mais claro que aqueles que teriam colonizado o país em que vivo. Os avós do meu pai migraram da Europa, no séc. XX, devido a incentivos para se branquear o Brasil; sou fruto de um projeto de branqueamento da sua população. Os avós da minha mãe eram índios, mas isso importa pouco, na verdade isso não importa nada. Ninguém nunca quer saber dos Mapuche. Uma vez uma historiadora dos Estados Unidos dividiu a historiografia da escravidão e colocou meu pai como um historiador of color, porque, como ela que é negra, ele é latino. Ao fim da sua fala, meu pai lhe lembrou que ele fazia parte da supremacia racial do Brasil. Um país escravista. Para os mexicanos, gringo designa somente os americanos. Acredito que apesar de serem simpáticos comigo e alguns me acharem lindo, muitos chilenos não se vêem como índios. Uma vez briguei com meu pai porque, tendo eu dito que a Regina Casé era preta, ele se indignou dizendo é claro que não, afinal os nordestinos do agreste são herdeiros de povos indígenas da região. Mas a Regina Casé não é nordestina nem preta. Nasceu no Leblon. Depois eu vi um vídeo com seu genro em que ela falava que, enquanto ela que era branca não sofria discriminação, pessoas pretas como ele sim. No México, a Regina Casé seria considerada morena. Na escola, chamavam a June, a Roberta e a Bebé de meio moreninhas. Os avós da Bebé vieram do sul da Itália, o pai da June é um milionário do agronegócio goiano e os da Roberta não sei. Lembro que seu pai morreu quando estávamos no colegial. É uma escola muito rica, muito cara. Não gosto de dizer de elite porque elite quer dizer os melhores e não acredito de forma alguma que ali estejam os melhores. Minha mãe trabalhou lá por quase 30 anos. Certa chefe um dia lhe disse, Ana, quando você fica brava fica parecendo uma índia botocuda, comedora de gente, antropófaga.


Pudahuel, 24 de novembro

Sexta. Viernes. Aeroporto de Pudahuel. Encontrar com a Clara em sua casa de esquina em Ñuñoa. Caminhar pelo Barrio Italia. Jantar no Silvestre Bistrô. Merluza austral com batata, acelga e aspargos. Vinho e michelada mexicana (cerveja com doce de tamarindo que a Sthefany trouxe) na casa da Cris, catalã, com as chilenas Olí, Mahuí e Amanda. José Domingo Cañas. Sábado. Sábado. Viagem de carro. Sara e Marina. Em Quilpué, a casa em que Roberto Bolaño viveu dos seus seis aos 11 anos. Trabalhando como cobrador de ônibus. ValparaísoAscensor Espiritu Santo. Jantar no Restaurante Circular: caldillo de congrioChardonnay Sour e pão com maionese. Paseo YugoslavoCerro Alegre. Éx-Carcel de Valparaíso  e Parque Cultural. Ascensor Reina Vitoria. Cerro Concepcion: Paseo AtiksonPaseo Gervasoni. Jantar no Bar Restaurant Mi Casa: empanadas fritas de mechada queso e camaron queso e pisco sour micasa. Música ao vivo, boa música ao vivo em um restaurante, o que é raro. Gran Sazón Nazca, ceviche e arroz chaufa. Cerro Bellavista. Domingo. Domingo. Museo a Cielo Abierto. Mercado Puerto. Café da manhã no Café Portomaggiore, do italiano Leonardo Diaferia: sanduíche de boscaiola (queijo, creme de cogumelos e tocino), tiramisú e café expresso. Conjunto Habitacional Quebrada Marquez, construído em 1949 pelos pedreiros e projetado por Pedro Goldsack. Viña del Mar. Museo Fonck, homenagem ao explorador prussiano Franz Fonck, geólogo, arqueólogo, próximo de Humboldt. Coleção de povos indígenas do Chile – Diaguita, Tehuelchues, Selknan, Mapuche, Rapanui e mais – e bastante contexto etnográfico, que no outro museu não há. Moai de Ahu One MakaihiPunta Pite. Em Papudo, no La Roca: marraqueta com pebre, merluza frita com arroz e papa mayo. Concón: comer, no Perla del Pacífico, empanada frita de pino de locos e ver o sol-se-pôr do alto de suas dunas. Cerro Bellavista. Segunda. Lunes. Café da manhã no Café Portomaggiore: sanduíche de ave palta e torta della nonna. Na verdade, acho que a Itália tem sim corpo. José Domingo CañasLastarria. Librería Editorial USACHCentro Cultural Gabriela Mistral. Mercado Central. Almoço no La Vega Chica: marraquetas com pebre, caldo de pata e sopaipillasLa Vega CentralPlaza de Armas. Palácio e Centro Cultural de la Moneda, exposição de arpilleras dos anos 1980. Plaza de la Constituicion. Confitería Torres: sanduíche barros luco. O restaurante é de 1879 e o sanduíche não tem igual. José Domingo CañasBar Rapanui: chorrillana piscola. A comida é boa, mas sou brasileiro e gosto de atendimentos ternos e cordiais. Não me importa a sociologia brasileira, a revolução não será fria, técnica nem profissional. Sem propina para o Bar Rapanui, com propina a todos os outros; gasta-se muito com a propina. José Domingo Cañas. Terça. Martes. Museo de Arte PrecolombinoSalvador Cocina y Café: empanada de prieta com salsa, ají e pebre, coxa de frango com cogumelos, arroz pilaf e cebola escabeche; chá gelado genial, de abacaxi, pepino e menta. Museo de la Memoria y los Derechos Humanos. NAVE. Por fora. Unidad Vecinal Villa Portales. Quase fomos a El Hoyo e quase ao Bar Liguria, mas, enfim, Fuente Alemana: sanduíche italiano de lomitos. Italiano é qualquer sanduíche com maionese, abacate e tomate, embora maionese, abacate e tomate não venham da Itália, mas da América. Para a Clara um outro sanduíche gigantesco. José Domingo Cañas. VinocracíaEm português, brega; em espanhol, malgusto. Salon de Pool Los Quesitos, aprender com Sara, Marina e Sthefany a jogar o bilhar. José Domingo Cañas. Quarta. Miércoles. Parque Bicentenario de la Infancia. Cerro San Cristóbal. Quase almoçar no El Barrón. Almoçar no Mercado Matadero-Franklinmarraquetas com pebre e pastel de choclo. Panadería La SuperiorCEPAL. Por fora. Municipalid de Vitacura e Parque Bicentenario. De los adultos. Bluebird Cafe: kruchen de nuez e um café expresso. Peruano. De presente, um bilhete para subir de ônibus até a virgem e outro presente, para subir de funicular. A gentileza dos chilenos. A Virgen de la Inmaculada Concepción. A cidade vista de cima. A cordilheira vista ainda de baixo, agora um pouco menos abaixo. José Domingo CañasLos Pincheira: completo italiano. Mais um completo italiano, de trinta centímetros. José Domingo Cañas. Quinta. Jueves. Madeleine Panadería: pain au chocolat e café expresso. Parque Bustamante. Café Literário do Parque Bustamante. La ChasconaCentro Cultural la Moneda, exposição Atacama-Hamburgo. E a violência colonial. Salvador Cocina y Café: mollejas chupas de guatitas; chá gelado genial de etc. Museo de la Ciudad de Santiago, na casa colorada, com a fachada mais antiga da cidade. Cerro Santa Lucía: Fuente Neptuno, Jardín Darwin. Museo Sacro de Arte Colonial São Francisco, os quadros, os pavos e de supresa a medalha do Nobel de Gabriela Mistral. Iglesia de San Francisco; apesar do que diz a Lorena, a mais antiga da cidade. Uma igreja que foi derrubada do alto do morro e reconstruída embaixo, no séc. XIX, não pode ser ainda a mesma igreja e assim a mais antiga da cidade. Ou pode? Universidad de Chile Campus Juan Gomez Millas, Facultad de Filosofia y HumanidadsUniversidad Diego Portales, ver a palestra de Alejandro Zambra. Ficamos sem entrar. Não havia palestra nenhuma de Alejandro Zambra. Plaza Brasil. Vinho branco. Jantar no Bar Valdivia: sanduíche de merluza austral empanada, salsa tartara, cebola morada, tomate, coentro, ají verde e mostarda dijon. O que que para você precisa ter em um bom sanduíche? A Clara perguntou. Plaza Pedro de Valdivia. Fim àquele vinho branco. José Domingo Cañas. Sexta. Viernes. Empanadas Don Guille: pino solo pino con merkén. Museo de Solidarid Salvador Allende. Cerâmica do malaguês Picasso. Pinturas dos uruguaios Figari e Gamarra. Sobretudo as molas dos Guna Yala. No entanto, as únicas sem legenda e placa. Dé qué pueblo indígena son? O guia do museu responde no son indígenas, son tejidos contemporáneos. Esse imbecil sem igual. Os latino-americanos não merecem dó. E os europeus não merecem perdão. Muito menos eles, dó, e nós, latino-americanos, perdão. Na Panadería Fufu, café de olla com cardamomo. Cementerio General. Túmulo da Família Allende. Túmulo de Violeta Parra. Memorial aos detidos e desaparecidos. Memorial aos executados políticos. Todo o meu amor está aqui e ficou pegado às pedras, ao mar, às montanhas. Café Restaurant Las Lanzas: sanduíche italiano de mechada, sanduíche de merluza frita com maionese, pimentão grelhado, e pisco sour. Fuente Suíza: empanada frita de mariscos. Vinocracía, infelizmente, de novo. José Domingo Cañas. Sábado. Sábado. Monasterio Benedictino Santísima Trinidad de Las Condes. Com toda sua luz e paz. Com a religiosidade que os gatos cultivam nas caixas de papelão. Com a necessidade de intermediar a relação com Deus por meio de ritos como de frestas, de clarear sua morada nunca por uma luz direta que nos cega. E com poucas palavras para não ferir o seu silêncio. Casa de Lorena e Diego Chonchol em Vitacura, e, sim, muita ternura. Aperól, vinho rosé, arroz branco, salada com abacate, ceviche de merluza, salmão e camarão, sorvete de arándano e seus filhos Claudia e Lucas. José Domingo Cañas junto a Sthefany e Sara. Íjole Taquería: tacos de cochinita pibil. Como é da península, nem na Cidade do México encontra-se como por lá, disse Sthefany Daniela. Carrete da Olí. José Domingo Cañas. Domingo. Domingo. Despedir-se da Clara e de Santiago. Deixar a Clara e Santiago. Sair de Santiago. Voltar.

. . .

AFTER EDNA MILLAY

 

My poems burns at both ends;

It will not last the night;

But ah, my foes, and oh, my friends

It gives a lovely light!

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POESIA NACIONAL-SEMIÓTICA


O Brasil não existe

menos do que uma cadeira,

mas sobretudo uma cadeira não existe

mais do que o Brasil,

e, se o Brasil não existe,

eu não me sento sobre uma cadeira

e se eu me sento

sobre uma coisa criada por gente

também podem ter criado o Brasil

a partir do chão em que piso

não apenas teoricamente,

embora não todo mundo,

embora sobretudo

um tipo muito certo de gente

para quem o Brasil existe

figurativa e não apenas tematicamente,

pois há coisas de carne e osso, e outras coisas

com outras propriedades de corpo, ah

esse papo de que o país em que vivo

não existe ou não é figurativo

já está me deixando louco

. . .

MUDANÇAS TÃO RÁPIDAS

 

Faz tempo ouço

rumores de mudanças climáticas,

como já te contaram das minhas

mudanças de humores,

mas é porque nunca há

a resposta dada e imediata,

como quando você se ri

e eu acho graça

e, em outras vezes que você ri

e eu sinta que de mim,

eu sinto raiva,

como nem sempre de chuva,

hoje, essas nuvens negras

são na terra da garoa

para nós um signo de fumaça

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TIKTOK

 

Não tenho tique

eu tenho TOC

Tenho fobia de buraquinhos escuros

Tenho medo de pensar no futuro

Eu apaguei o insta

mas continuo num poço

fundo de onde não se diz

terra à vista

e nem por um instante

eu sorrio

Não me faz rir

sequer o vídeo da vovó vegana

não me divirto

nem com o rato dançante

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UMA CRÔNICA


Sem os nomes que eu não tive, não se poderia jamais preparar-se o meu nome. Como eu, também ele foi cozinhado na barriga da minha mãe. Mas eu, que não o entendia quando criança, reclamava:

– Mãe, mas por que vocês não me deram um daqueles dois nomes?

Não sei se eram mesmo melhores ou apenas maiores. Se bem que Jorge Miguel – ou Miguel Jorge – brilhavam, sim, compondo ao nome que tinha e tenho, o nome que meu pai quase teve, mas não chegou a ter. Não sei se eram melhores, maiores, ou se eram apenas mais uma coisa destinada ao meu pai que eu também poderia ter tomado para mim, assim como minha mãe, a namorada que eu lhe tomei ao nascer.

Jorge, porque meu pai nascera ao dia 23 de abril de 1972, data em que se celebra o Dia de São Jorge, e minha avó arrependeu-se um pouco de não o ter homenageado. Pois meu pai acabou por ficar com aquilo que já se lhe destinava: o primeiro nome do nome composto do seu pai, Rafael Dirceu, avô que não conheci, mas de quem meu pai guarda portanto um pedaço. E eu, por minha vez, da mesma forma acabei por compartilhar com meu pai um nome, esse que não tivemos. Também eu lhe guardo um pedaço: seu e meu pedaços de Jorge, que não vieram a nascer, mas que se acrescentaram às palavras ouvidas por nós de dentro do útero das nossas mães.

Miguel, essa outra coisa que ali se me destinava; o amor e a miopia de Miguilim, personagem de um dos muitos livros que minha mãe me leu grávida, em voz alta: a novela Campo Geral, cujo autor sabia e forjava mais do que ninguém o quanto nomear era originar, gerar, instaurar, era dar sinais e contar, já, a história de alguém, criá-la. Dizer que um nome é um destino não é curvar-se ao império historicista da etimologia. Um nome, além de remeter a uma morfologia arcaica, remete a uma pessoa, e outra que veio antes dela, assim como o nome Ana da minha mãe remete ao nome da santa que, como minha mãe a mim, ensinou Nossa Senhora a ler. Sob o som da palavra destino tudo vibra: as letras da palavra destino deslocam o sentido da História não só como história de morte, mas como história de vida. Em um destino, o passado não explica o presente. O presente destina o passado, de trás para frente.

Não sou diferente do meu pai e da minha mãe em considerar Campo Geral a história mais bonita que já li, e me emociono se penso nesse menino a quem o direito de uma vida não violenta foi restituído por uma pessoa que vinha de fora, sem ter por que se preocupar a não ser pela própria preocupação de cuidar. Penso no olhar do médico para criança, na criança que ganhou um par a mais de olhos; mas eu – que uso óculos desde os meus três anos –, ao contrário, escolho no meu destino este nome pela sua violência. Miguel é quem enfrenta o diabo e disputa o corpo de Moisés, Miguel é quem é sincretizado como Exu, Miguel é patrono da cavalaria medieval, é o Arcanjo dos exércitos e dos militares.

E então visto meu nome como um nome de guerra, e saio protegido, armado, feito São Miguel, feito São Jorge.

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A SAUSSURE/ SOCIR/ SOCIURRE

 

Perder Socir

Aprender Sociurre

Je l'ai perdu aussi

comme un sorcier

Também não tem mais "bruxo

de Juazeiro" "mais não,

não tenho ritmo mais não"

não sou mais mago das palavras

Eu tinha tão pouco

e mesmo o que tinha me tiraram

"Aujourd'hui mamain est morte"

Minha antiga pronúncia de Ferdinand de

Saussure est morte

Já é morto João

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UMA FRASE FEITO UMA PAREDE BRANCA


Se você soubesse

quanta coisa na vida a gente aprende olhando para uma parede branca

se você tivesse paciência

de meditar sobre essa frase

sobre a parede branca

você poderia pensar em tudo o que não diz nada

até aprender o que não se diz nunca

feito essa frase

feito uma parede branca

mas antes você se cansa

e se levanta

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Certa vez disse para alguém que eu e Totô temos uma amizade romântica. Eu completei: não no sentido amoroso; eu e Totô pintávamos juntos aos 15 anos, acreditávamos estar no caminho de qualquer direção artística certa, trocávamos email sobre o que líamos e líamos muito, não tínhamos celular, a gente não tinha rede social nenhuma, nossa estética era romanticamente tanto moral quanto ética, e começamos a escrever também poesia juntos, de tal forma que até hoje somos como que um dos únicos leitores um do outro. Além disso, havia – e quanto a isto ainda há – qualquer coisa de um gênio romântico: nossas brigas intempestivas, nossas crenças resolutas que já nos fizeram romper e reatar umas três vezes, acredito. Totô não passa cinco minutos sem que se irrite profundamente com algo que digo, e eu, que sou mais paciente, até que consigo se não passar de sete.

Portanto sim um tanto de sentido amoroso. Aliás quando tínhamos 16 anos houve até uma noite em que ele quis me beijar um pouco.

Hoje ele tem uma namorada taiwanesa gata. Ontem lhe mandei mensagem dizendo que gostaria que eles fossem os padrinhos do meu primeiro filho. Espero contrapartida: eu sempre disse que adoraria ter filhos de olhos puxadinhos.

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POEMAS SÃO COMO LISTAS


De versos

os poemas são antologias


Tenho aprendido a aceitar

a poesia confessional mas

também o ódio à poesia confessional

Sob o signo de Confúcio

tenho me tornado mais brando


Há diversas coisas

que se produzem como poemas

Há muito preto no branco

de uma página que não é poema

e não há problema

Assim como nem tudo é preto no branco

Assim como é difícil de reconhecer como verso uma linha que se extenda

tanto


Diversas coisas

recortadas

pelo branco da página

nos comunicam

São como yinyang

são como listas

Hoje antes da análise

na antessala sobre o caderno

eu escrevia:


Encerramento

briga com pai

vontade de falar de outras coisas

produção de diferenças

pessoas mais velhas

Provas

fim do semestre

tranquilidade

animação

Gabe

amigos o tempo todo

trocas

me ver como branco

me ver

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ENCARTE DE "JOAO GILBERTO EN MEXICO" (1970)

 

Esse disco se deve a Mariano Rivera Conde. Vim passar dez dias no México e encontrei Mariano, que eu já conhecia muito, por procuração (via Antonio Prieto). Mariano me convidou para fazer um disco com ele, da maneira mais hospitaleira. Fui ficando, de repente estava morando mesmo. Fiquei mais de um ano, o México é uma maravilha. Ouvi galo cantando no meio do dia, da tarde, de madrugada, de noite – há quanto tempo eu não via isso. Gato, galhinha, carneiro, pato, papagaio, onze perus, cachorro, tem uns onze; é tudo de um senhor que mora aqui embaixo, no barranco. Ainda tem duas filhas, dois filhos e uma porção de netos. Um dia ele matou um porco e dividiu entre os vizinhos todos. Disse que é para se fazer assim.

Oscar Castro Neves chegou de Los Angeles, tirou os sapatos, alugou um piano, pendurou o som, ficou feito uma luz. Parecia a estrela dalva que daqui se mira.

Chico Batera desapareceu. Não tirou os sapatos e disse que não ia pendurar nada, não. Aí, fez os sons de percussão com José Luis Ferra "La Manja". No fim, eu dei um pedaço de bolo a ele. Ele ficou calado, comeu e começou a engordar. Depois, ficou magro de novo. Aí, ficou assim o dia todo.

Manuel, da cabine de seu avião, comandou a turma do som - Roberto, Bernardo, Rico - com toda boa vontade e amor.

Mariano, um grande amigo, das melhores pessoas que já vi.

Eu quero que esse disco dê um abraço no bonfá em todos os meus amigos.

Minha gratidão e um grande abraço ao Dr. Pedro Bloch.

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QUANTO AO CINEMA

 

De tal forma o reconhecimento das grandes virtudes de algo responde a seus grandes vícios que, na verdade, o movimento é um só: do seu ponto forte se faz seu ponto cego, e o contrário. Fernando Pessoa o compreendeu melhor que ninguém. Porque Campos é tão metafísico, verborrágico: é tão infinito, mas tão limitado. Por ser Caeiro excessivamente didático que é pernóstico e humilde, é um idiota e um mestre. Na sua aristocracia, Soares encontrou aquilo que procurávamos tanto e que tanto precisamos condenar. Mas apesar da filologia pessoana, não considero sua obra incompleta e sim aberta. As posições trocam-se, sempre, estão sempre transformadas: é como se Caeiro, Campos, Soares, Reis, ao mesmo tempo, estivessem inacabados e continuamente a se referir, a se reescrever, a escrever Pessoa — de novo. Tanto nunca quanto para sempre.

Depois de comentar um autor tão grande me meterei a me comentar. Não sei se será ironia ou heresia. Me basta que essas palavras rimem.

Também pela implicação recíproca enxergo qualquer coisa como a minha poética. Poética – não no sentido da obra do livro do autor – no simples sentido próprio ao que faço, e como vejo as coisas. Meus vícios poéticos são virtuosos, minhas virtudes poéticas são viciadas. Longamente poderia aqui arrolar várias. Por exemplo essa minha maniazinha provocativazinha polemiquinha, que é chucra e eu não abro mão. Se da brincadeira vem contigência, vejo vindo também necessidade.

Ou que seja isso de eu não gostar de cinema, sem dúvidas. É uma virtude: ignoro a sétima arte, a mais moderna. Ignoro a sétima arte, a mais moderna: a frase por si dá conta de denunciar à sua vez meu tremendo vício.

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ADEUS MAIO


Dizem a poesia salva

A minha condena

Não sei se porque

não é poesia

mas condena

Ou apenas porque

sou polêmico

condena

Mas sei não não é

apenas a minha

Nunca a poesia

salva todo poema

condena

Não acreditem

no que lêem na internet

crianças no que lêem

nos livros adultos

Isso de que a poesia salva

é o verdadeiro problema

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QUANTO À LOUCURA

 

O pensamento ao se imitar nas coisas não é um degredo em relação a elas, mas a nossa forma de participar delas, de estabelecer uma relação possível com as coisas. O meu pensamento, por se imitar no mundo, não é um exílio do mundo, pois é, antes, um encontro com ele; é — antes ainda — o mundo. Não sou eu que me espelho nas coisas, é o mundo que, matéria da qual se forjou meu espelho, espelha-se em si. O meu pensamento está no mundo e nas coisas, é mundo e coisa entre as coisas — é do mundo e das coisas. Foram eles que me deram essa forma muito específica de imitá-los (isto, é de pensá-los) que, antes de ser restrita, é a única condição de liberdade: definida não mais como isolamento, e então como pertença.

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NENHUM POEMA

 

Em maio: só um poema. Maio foi um mês de muita escrita acadêmica. O preço pago foi o silêncio da fala que irrompe sobre os poemas. Escrevo poesia porque gosto demais da sensação de falar. Mas, quando escrevi um poema sobre o melhor dia da minha vida, em novembro, eu preferi o silêncio. Porque ganhava algo fundamental: não quis descrevê-lo. E eis que hoje é um dia em que algo se perdeu. Porque perdi algo fundamental: não posso aqui retê-lo.

Tão somente então reapresento a seguir um trecho do poema em que não representei.


o dia que não coube no poema

o dia que o poema não conheceu


o dia deitado para fora da página

o dia feito em pé contra o verso do poema

mas mais falido do que fálico

sem a falácia de um poema


o dia: não

um dia: meu

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PARA O TÉO


Não sei se a poesia é filosófica. Sei que a Filosofia é um discurso paranoico e que a paranoia é um estado de sítio contra toda e qualquer contaminação. Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final, e sei também que o poema é o discurso contaminado por excelência. Absolutamente, tanto quanto qualquer discurso contaminado será poético, no sentido não-grego e anti-etimológico da palavra poeta: onde se descobre na coisa o que não é da coisa. Definir o signo em termos de significante e significado é defini-lo, mais que a partir de sua identidade, a partir da sua alteridade. Por isso vou me lembrar do sensível e inteligível de Agostinho e chamar o signum simplesmente de um sinal que aponta para o outro. Os sinais em rotação seria um título menos aurático, mas de fato mais poético: de repente, me imaginaria em meio a uma rotatória na saída da Rodoviária de Belo Horizonte, quando os meus olhos batessem com a sua lombada na estante.

A Filosofia, que é tão paranoica, tem muito a aprender com a poesia. Eu, que sou tão hipocondríaco, sem dúvidas tenho muito a aprender com o desejo de contaminar-se da poesia. E a poesia — que pode até não ter o que aprender com a Filosofia ou comigo: ela quer mesmo assim. É o seu jeitinho de ser.

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REDESCOBERTA DA LÍNGUA

 

Aquele bardo baiano havia já entendido o prazer orgânico da língua quando cantou "ele me deu um beijo na boca e me disse", e, dois anos depois, "gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". Ou, em termos técnicos: tinha entendido a intersemioticidade das linguagens do beijo e da fala. Ou, em termos práticos: cala a boca e me beija.

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