POESIA É TRÓIA VINGANÇA

 

Poesia pra mim é vingança

Lembrei de mim criança

lembrei da doceria Brigadeiro

onde eu sempre ia

comer tanto doce

Mas tanto comer doce

quanto ver as tartarugas

no laguinho


Eu ia mais pelas tartaruguinhas


Um dia

um tufão furibundo abateu-o etc

um menino partiu a tartaruguinha

o meu porquinho da índia etc

contra a pedra


Lembrando disso

eu não pude escolher eu

escrevi esse poema

Não em nome da tristeza que senti

eu me vingo

Eu me vingo pelo próprio conteúdo

da tristeza que senti

eu me vingo em nome da vida

da tartaruguinha

e contra Cláudio Daniel

quem? 

que disse que a poesia brasileira

é de uma mnemania

muito gracinha muito

banderiana etc


(Beyoncé é legal

O que estraga são os fãs

Idem ibidem pros irmãos

Augusto e Haroldo de Campos)


— desculpa

quem é Azealia Banks?

. . .

CONSTELAÇÕES

 

A noite quente mais ventada

mais azul (que a noite quente

ventada mais escura é a noite

da Bahia) e as cigarras

do sul da França


Associações por som

dentre as quais a rima dá o tom

Lá o canto delas

(com uma brisa tão pesada

quanto a da Bahia)

e outras cenas mais

de mim criança


O quadro de H. Matisse

que minha irmã tatuou no braço

lui qui a une chappelle

à Saint Paul de Vence

A dança

. . .

ANOTHER ONE ABOUT HER (OUTRO SOBRE ELLA)


Escrevi 100 vezes

no meu caderno

o nome de Ella Fitzgerald

à mão. A dama

inscreveu com a voz

sua voz no topo

da canção

. . .

A NOTE ABOUT ELLA


All I've been hearing

is blues. But I ain't sad.

Everytime I dream

about something

this thing comes through.

My blues ain't blue.

. . .

MANIFESTO

 

Buscar

não a palavra poética

mas

a palavra não poética


Muito mais desafiador

Uma palavra que não crie


embora enquanto for palavra

talvez não seja possível

. . .

MARIA ROSA

 

Artigos,

cantigas,

cartas

de horror,

canções de lista,

papéis, papers,

"Ainda é cedo"

"não vá embora",

"A oposição dialética",

todos esses sintagmas

manjados,

frases velhas,

fases duras da vida,

"Escuras flores puras",

"As rosas eram todas amarelas",

não importa o que seja,

a toda hora,

qualquer ideia,

em cada trecho que ando

tudo o que escuto e vejo

me lembra dela

. . .

DOIS SENTIDOS

 

Vamos pensar um pouco sobre sinestesia.

Todo sentido é sinestésico. A própria dobra do pensamento é essa: reunir em um único golpe sensações provenientes de sistemas distintos. Lembremos, são cinco: olfato, audição, paladar, visão e tato. Há sempre inflexões, sempre cedemos a cada vez mais para um dos lados do pentagono – do pentagrama? –, no entanto, lá estão sempre todos reunidos na formação do significado, aquilo que “faz sentido”.

O princípio que os reuniria é: serem todos passivos. Mas nos permitamos isolar dois deles e perguntar pelo seus órgãos: o paladar e o tato, a língua e a mão. Provisoriamente, apenas, aceitemos considerar o paladar passivo. A língua se engaja em outras duas atividades que seriam, então, propriamente ativas: o beijo e a fala. É com ela que o sentido do tato, por sua vez, encontra seu órgão da mão – dotado também de especial pendor comunicativo – sempre em particular cooperação. Não se come nem se cozinha sem usar as mãos, não se fala, não se lê, não se escreve sem as mãos; e, por favor, não venha me beijar sem pegar no meu pescoço.

Antes de Aristóteles ter estabelecido as bases para a nossa teoria com cinco, um filósofo atomista defendia a proeminência do tato como único verdadeiro sentido. Para Demócrito, todo o resto é também decorrência de um toque físico.

Isso é bonito. Mas não esqueçamos que a mão que toca e a língua que masca procuram seu objeto – como o fazem os olhos, o nariz, os ouvidos –, mas também dão novos objetos à luz, dividem-nos com o grupo. A mão e a língua criam para fora da ficção do indivíduo. Independentemente da revisão fenomenológica e a autoria criativa que se queira imputar aos olhos e aos ouvidos, sem a mobilização de outros órgãos, esses não poderiam se engajar em atividades comunicativas. Sim, que os olhos sejam tão dotados de ação quanto quiserem, a linguagem não existirá jamais se essa criação não for partilhada de uma pessoa a outras – por meio das mãos, por meio das bocas.

Criança, meu primeiro vício foi chupar o dedo. Não nos esqueçamos da solidariedade poética entre a língua e a mão. Pelo menos por enquanto, não¹.

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¹ Em uma discussão, um idiota mandou duas mensagens a um menino que pretendia cabular aula: "você está sendo um idiota" e "no sentido grego da polis". Gostaria de acrescentar — a "solidariedade poética" — "no sentido grego da poiesis". Mas gostaria que não me considerassem por isso um idiota, no sentido brasileiro da idiotice.

NOTA SOBRE O TEXTO "A LINGUAGEM DA LÍNGUA"

 

David e Rodrigo me chamaram atenção sobre o papel prismático do paladar. A língua não só beija e fala, ela deglute. O que nos revela, em primeiro lugar, que: as palavras devem ter tanto gosto e textura como comidas e línguas alheias o têm. Em segundo lugar, parte importante do prazer em comer deve ser também uma atividade ativa. Não recebemos passivamente o sabor, mas o criamos, como as outras duas atividades, pelo trabalho da língua.

Se beijar e falar representam para nós distinções da cultura humana, não menos a língua se afasta da natureza quando nos alimenta, porque ela não o faz em nome da subsistência. Slam poetry, ceviche e french kiss são símbolos igualmente dispensáveis e necessários entre si.

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NA LÍNGUA MORAL (A LÍNGUA DO CAPITAL)

para Elaine

Marilyn loved to buy

Tifannys, Cartiers and Gorhams.

Indeed I prefer her

who said

to prefer diamonds

but sat

in the first line of Mocambo

so as Ella could present

where she wasn't allowed to

at that time.

A lot of people say instead

they prefer people

than diamonds.

No,

but they don't do

what she silently did.

Yes,

I don't buy it.

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OVO E GALINHA

 

O que veio antes:

o ovo ou a galinha?

A relação entre som e significado

é motivada pela poesia

ou pela motivação já existente

entre som e significado

é que se pode fazer poesia?


Venho frequentando bastante

as páginas do meu blog.

Acredito que sou

meu mais frequente leitor.

Acredito que o autor

que leio mais frequentemente

sou eu. Quem veio antes:

o ovo ou a galinha?


Estou tentando descobrir

um ritmo certo

para a medida de cada verso.

Se não fosse o som

a página seria um deserto.

"Nunca confundam causas e efeitos:

o problema do Brasil é a elite letrada

e não os analfabetos."

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BRISA

 

Na casa de Fernanda Maria Rosana

não sobra fresta em janela

Seu neto me contou há algum tempo

que é porque morre-se de brisa

segundo um provérbio italiano

contado pela velha

Hoje enquanto cruzava a rua

me cruzou um vento frio

Súbito me lembrei de Maria Bethânia

Pronto lhe imaginei cantando

vamos viver no Nordeste

Anarina

vamos morrer

de brisa

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27ª PUBLICAÇÃO DO MÊS DE MARÇO

 

Quando enfim puderem comprovar que os signos não são de todo arbitrários, será importante medir a extensão que designa o som ma. Falo menos do significado também extenso de palavras como mar, mãe ou demais e mais da duração profunda de que se ocupou esse mês de março. E não consigo senão pensar no mês de maio.

Por que se tem raiva do tamanho de maio? Porque se tem pressa. E no entanto é preciso adiar a sua demora. Maio, quando não passa: só então traz suas grandes, largas, dilatadas mudanças, tão verdadeiras. Tão únicas de maio, tão próprias dele, tão somente para os que podem não vê-las: quando o tempo de maio vai junhando no ar de velas e balões rumo ao céu.

Sou levado a crer que têm ma as coisas em que entramos e, ao cabo de um extenso processo, saímos transformados; como o ar vibrando, que, pela boca fechada, sai do nariz até ser finalmente solto na qualidade aberta de um aSou ainda novo, mas, creio, quando puderem comprová-lo já estarei morto.

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CERTAS IMPRESSÕES

 para Luiz e Moti

Certos tipos de mosquito

deixam apenas uma leve impressão

cinza na mão e na parede

quando são esmagados.

Não se encontram mais patas,

antenas, asas; me pergunto

para onde foi aquele corpo

que pareceu apenas pulverizar-se.

Nesses momentos, fico

com a leve impressão

de que tais tipos de mosquito

têm alma. E deixo de matá-los

até que surja outro da raça.

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O LIRISMO DOS COVARDES

para o Chico 

Não se pode confundir a história feita a contrapelo com uma história que só compreenda resistências. Há sempre os que cederam, que não resistiram. Me preocupo com o falseamento de quem conte apenas a história da coragem. Perderá a condição humana fundamental da covardia. Adriana Calcanhotto por exemplo construiu sua obra inteira entorno da ausência de brio. Você tem brio? Ou, tão mais simplesmente: talvez porque não haverá mais corajosos se não houver covardes.

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A LINGUAGEM DA LÍNGUA

 

A língua é só uma — a que fala, a que beija. Assim não sei o quão se diferem de fato o falar e o beijar. Um bom beijo nos fala assim como em uma boa conversa as línguas se encontram.

Quando beijamos, a língua se lembra do exercício da fala: essa que beija é a mesma que o dia todo com a linguagem trabalha; e por que na articulação da fala deixaria de haver uma lembrança do beijo? Falar é tentar beijar com palavras.

Falar faz sentido. Não preciso nem falar que beijar também faz sentido. Verdadeiramente acredito que qualquer órgão pensa tanto quanto o órgão cerebral. Minha língua pensa: falando, beijando, na sua forma intercomunicativa, particular e prazerosa de pensamento. Na sua linguagem.

Mas então o que tentamos dizer durante um beijo? Nada mais do que já dizemos.

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TEORIA DAS CORES


O dia é

escuro

A noite é

clara


É: o

dia

a

noite


Por isso o dia denso

a noite fina


Como um dia

negro

que só a noite

ilumina

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NÃO HÁ TEMPO A PERDER

 

Para Auerbach,

a literatura havia acabado.

Para mim —

com o perdão de ter justaposto

Auerbach e mim —,

peço licença:

a literatura acabou

de começar.

Não há mais tempo a perder.

Quando da publicação

do primeiro volume

da busca pelo tempo perdido,

era 70% a taxa de analfabetos

no país em que nasci e vivo.

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O LIRISMO DOS FEIOS

 

Cansei dos descolados.

Tenho preferido os colados,

com calos, e os calados.


"Eu não gosto do bom gosto"

"Estou farto do lirismo comedido"


Vi um vídeo chamado de cringe.

Era uma menina feia

fazendo uma trend.

Não chamariam assim

uma menina bonita

com domínio da técnica:

aparentemente,

consideram aqueles

que se adequam bem à estupidez

mais inteligentes.

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PARA CRISES DE GASTRITE

 

Chá de espinheira-santa

Um pouco de João Gilberto

— pode ser En México

É que o brujo é médico

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CHACRAS

 

Quando a gente

deixa a louça secando

depois de lavá-la,

ela fica com umas espécies

de manchinhas. Tenho tido

a sensação de insetos andando

pelo meu corpo. Tenho

tido brotoejas, acho

que de calor.


Às vezes meu celular para

de tocar música do nada.

A mola da porta

da minha geladeira

está meio gasta.

Ela não fica mais fechada.

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