ADEUS MAIO


Dizem a poesia salva

A minha condena

Não sei se porque

não é poesia

mas condena

Ou apenas porque

sou polêmico

condena

Mas sei não não é

apenas a minha

Nunca a poesia

salva todo poema

condena

Não acreditem

no que lêem na internet

crianças no que lêem

nos livros adultos

Isso de que a poesia salva

é o verdadeiro problema

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QUANTO À LOUCURA

 

O pensamento ao se imitar nas coisas não é um degredo em relação a elas, mas a nossa forma de participar delas, de estabelecer uma relação possível com as coisas. O meu pensamento, por se imitar no mundo, não é um exílio do mundo, pois é, antes, um encontro com ele; é — antes ainda — o mundo. Não sou eu que me espelho nas coisas, é o mundo que, matéria da qual se forjou meu espelho, espelha-se em si. O meu pensamento está no mundo e nas coisas, é mundo e coisa entre as coisas — é do mundo e das coisas. Foram eles que me deram essa forma muito específica de imitá-los (isto, é de pensá-los) que, antes de ser restrita, é a única condição de liberdade: definida não mais como isolamento, e então como pertença.

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NENHUM POEMA

 

Em maio: só um poema. Maio foi um mês de muita escrita acadêmica. O preço pago foi o silêncio da fala que irrompe sobre os poemas. Escrevo poesia porque gosto demais da sensação de falar. Mas, quando escrevi um poema sobre o melhor dia da minha vida, em novembro, eu preferi o silêncio. Porque ganhava algo fundamental: não quis descrevê-lo. E eis que hoje é um dia em que algo se perdeu. Porque perdi algo fundamental: não posso aqui retê-lo.

Tão somente então reapresento a seguir um trecho do poema em que não representei.


o dia que não coube no poema

o dia que o poema não conheceu


o dia deitado para fora da página

o dia feito em pé contra o verso do poema

mas mais falido do que fálico

sem a falácia de um poema


o dia: não

um dia: meu

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PARA O TÉO


Não sei se a poesia é filosófica. Sei que a Filosofia é um discurso paranoico e que a paranoia é um estado de sítio contra toda e qualquer contaminação. Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem juízo final, e sei também que o poema é o discurso contaminado por excelência. Absolutamente, tanto quanto qualquer discurso contaminado será poético, no sentido não-grego e anti-etimológico da palavra poeta: onde se descobre na coisa o que não é da coisa. Definir o signo em termos de significante e significado é defini-lo, mais que a partir de sua identidade, a partir da sua alteridade. Por isso vou me lembrar do sensível e inteligível de Agostinho e chamar o signum simplesmente de um sinal que aponta para o outro. Os sinais em rotação seria um título menos aurático, mas de fato mais poético: de repente, me imaginaria em meio a uma rotatória na saída da Rodoviária de Belo Horizonte, quando os meus olhos batessem com a sua lombada na estante.

A Filosofia, que é tão paranoica, tem muito a aprender com a poesia. Eu, que sou tão hipocondríaco, sem dúvidas tenho muito a aprender com o desejo de contaminar-se da poesia. E a poesia — que pode até não ter o que aprender com a Filosofia ou comigo: ela quer mesmo assim. É o seu jeitinho de ser.

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REDESCOBERTA DA LÍNGUA

 

Aquele bardo baiano havia já entendido o prazer orgânico da língua quando cantou "ele me deu um beijo na boca e me disse", e, dois anos depois, "gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". Ou, em termos técnicos: tinha entendido a intersemioticidade das linguagens do beijo e da fala. Ou, em termos práticos: cala a boca e me beija.

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MENINAS MALVADAS

 

Meninas mimadas,

meninas tatuadas,

meninas graduadas,

meninas não tão descoladas,

mas meninas convencidas

que são; meninas

finas desafinadas

que não suportam cantadas

de caras que não são como

essas meninas tão claras

e tipo super bem chatas

— essas meninas malvadas

que não fazem questão,


amor, hoje não.

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DEMAIS A ARTE E A POLÍTICA


Brasil uma desordem

às ordens da Casa

uma despesa

na dispensa às custas

da Senzala

um princípio de lógica

que ordena

controla organiza

e mata


& o Samba


e a Argentina isso

& o Tango

o Uruguai Candombe

os Estados Unidos

isso & o Blues o Soul

o Jazz e mais tanto


Não importa se a arte salva. O que importa é que ela não basta. & porque a poesia não pode ser santa, com prosa didática

é que se termina

essa página

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SE TU SOUBESSE COMO EU NÃO SOU CUIDADOSO

 

Não tomo cuidado com,

o que me faz

muitas vezes insensível

Mas eu tomo cuidado de

– não sou cuidadoso

mas eu cuido


Por isso às vezes escuto

você é muito sensível

Miguel

e arrepiando

ao dizer vocativo do meu nome

fico mudo

. . .

DE CIRCUNSTÂNCIA

 

Era uma vez

não tinha no mínimo 94 anos

nem tinha no máximo 94 anos

um curitibano nos mostrou

como admitir ambas as sentenças

e então voou para outros planos

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O longo século XX

de Arrighi


O curto mês de abril

do Miguel


O amor ao verso

Um vídeo de um homem


pulando na piscina

em looping reverso 

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EU

à Gilda/ a Rousseau 

Amo minha caligrafia.

Eu amo minha relação errada

com os livros de Antropologia:

como se fossem manuais de ética,

como se eu descobrisse

que os Chinook o fazem

e de repente também quisesse

casar com a minha tia,

como se simplesmente

por serem diferentes

os Yanomami soubessem mais

sobre a vida, como se

eu me cristianizasse para seguir

o exemplo santo de Maria.

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OBSESSÕES

 

Sim

no Blues interessa

o que não é blues

no canto gregoriano

o que não é canto gregoriano

etc

Há entretanto exceções

obsessões

pudera

em Ella Fitzgerald

apenas o que é della

me interessa

. . .

NEM TUDO TEM TÍTULO

 

Nem um olhar

nem um beijo

vale mais que mil palavras

Nenhuma palavra

vale nada


Nem sempre dá

ou se quer sustentar

uma teoria da palavra

que o valha

. . .

 

A caligrafia da palavra

Amor


Para mim o fato do concretismo

ter construído sua teoria visual

em torno da letra impressa

deixar claro

que há mais de propaganda

que de poética


A língua —

para mim o corpo

Para o meu corpo

Para eu tatuar não o seu nome

mas a sua letra

na íris do meu olho


Por ser essa linha

uma extensão da sua mão

Para eu lhe estender a mão

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QUANTO AO MEU ÚLTIMO POEMA

 

A religião material da concretude também é uma forma de transcendência. Ela também busca religar-se com etc; ao que parece, a ligação com uma puta duma propagas do Washington Olivetto, méo. Não faço questão de uma poesia com experimentação de linguagem. Não tenho o último modelo do IPhone 15. Nasci em São Paulo, mas sei de extensões continentais e insulares. Ouvi falar de outras intenções, também. Para mim me basta uma poesia significativa, me basta se tiver significância.

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POESIA É TRÓIA VINGANÇA

 

Poesia pra mim é vingança

Lembrei de mim criança

lembrei da doceria Brigadeiro

onde eu sempre ia

comer tanto doce

Mas tanto comer doce

quanto ver as tartarugas

no laguinho


Eu ia mais pelas tartaruguinhas


Um dia

um tufão furibundo abateu-o etc

um menino partiu a tartaruguinha

o meu porquinho da índia etc

contra a pedra


Lembrando disso

eu não pude escolher eu

escrevi esse poema

Não em nome da tristeza que senti

eu me vingo

Eu me vingo pelo próprio conteúdo

da tristeza que senti

eu me vingo em nome da vida

da tartaruguinha

e contra Cláudio Daniel

quem? 

que disse que a poesia brasileira

é de uma mnemania

muito gracinha muito

banderiana etc


(Beyoncé é legal

O que estraga são os fãs

Idem ibidem pros irmãos

Augusto e Haroldo de Campos)


— desculpa

quem é Azealia Banks?

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CONSTELAÇÕES

 

A noite quente mais ventada

mais azul (que a noite quente

ventada mais escura é a noite

da Bahia) e as cigarras

do sul da França


Associações por som

dentre as quais a rima dá o tom

Lá o canto delas

(com uma brisa tão pesada

quanto a da Bahia)

e outras cenas mais

de mim criança


O quadro de H. Matisse

que minha irmã tatuou no braço

lui qui a une chappelle

à Saint Paul de Vence

A dança

. . .

ANOTHER ONE ABOUT HER (OUTRO SOBRE ELLA)


Escrevi 100 vezes

no meu caderno

o nome de Ella Fitzgerald

à mão. A dama

inscreveu com a voz

sua voz no topo

da canção

. . .

A NOTE ABOUT ELLA


All I've been hearing

is blues. But I ain't sad.

Everytime I dream

about something

this thing comes through.

My blues ain't blue.

. . .