AS CIDADES MUDAM E OS CAMPOS SÃO ETERNOS

pra quem tem pensamento forte, o impossível é só questão de opinião
e disso os loucos sabem, só os loucos sabem


É necessário expurgar, talvez não para todo sempre, senão momentaneamente, a expressão na medida do possível, é preciso que todos os homens e mulheres tomem consciência dessa estupidez da língua. A felicidade de hoje é sempre desigual da de ontem. Conhecem eles alguém em qualquer época que viveu algo na medida do impossível? O realizado, qualquer que seja, enquanto coisa real, foi sempre o possível.

Podemos compreender, diante da realidade distinta, por que se sinta a necessidade de explicitar esse horror, insistindo na redundância existencial de estar na medida... Nem por compreendida deve ser aceita essa farsa, quando poderíamos, em vez, dizer: estou mal por este mundo de merda ou estou bem e o mundo? anda uma merda. Sem o mas anda uma merda  mas é outro vício da língua, aqui odiado especialmente, porque mesmo eu o emprego tanto. Mas nada, tudo e. É fútil dizer há mais de um genocídio em curso mas ainda assim consegui encontrar felicidade; é que as chacinas acontecem, a gente se detesta por elas e alguns de nós são felizes, nem por isso mais ou menos indiferentes ao que ocorre. Se eu fosse feliz, diria há muitos que apanham fisicamente, isso me entristece e eu sinto felicidade: não em razão de surras, por uma outra.

Enquanto que a expressão na medida do possível é duma estupidez (pois que escolher falar está tudo bem, em vez de outra afirmação, é um ato que conta mais sobre a própria decisão do que se abre para a verificação do decidido), mas é de um moralismo absurdo — e o pior: não significando, assim, que se é mais engajado pra com o que se opõe sintaticamente.

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FRICÇÃO DE SUPERFÍCIE

Foi assim. Um professor qualquer tinha-me dito, apresentando uma proposta daquelas que se masca e cospe, e cumpre: nosso modelo é o Rubem Braga. Como sempre, mecânica, anotei, achei lindo, e repetia enquanto soava o sinal, enquanto ia à banca, e enquanto chegava em casa. Colei figurinha – e Rubem Braga, meu modelo.

E lavei a louça e deitei com o vizinho e dormi sem tomar banho, porque era gasto de água à toa e gosto das sensações que pregam. Todos os dias foram isso, figurinha e Rubem Braga porque sou mecânica. E mais outras coisas já que sem perceber fico assim, como quem lê e quem está escrevendo: rasa, escura, tatuada. Na base de escola e bofetada, porque tudo se repete e porque não sou Rubem Braga, porque ele tem prestígio e eu tenho louça, vizinho e uma folha de papel. 

Até que, vendo a exposição de um humorista, li exposto: cada dia me sinto mais mecânica. Se é para ser repetindo e aguentando e engolindo; se será de qualquer jeito, decidi. Comporei um grande álbum e virarei modelo também. Escurecendo debutei os recortes com a cara daquele Fernandes, porque naquela cara feia me surgiu algo de muito sisudo. Sim, me senti sensível. E se me sento a comer sensibilidade junto às empadas, não lavo as mãos. É preciso de estar lubrificada para receber as tatuagens: tudo é marca, tudo se sedimenta nas extremidades. Foi aí que o atrito do papel engordurado com a ponta dos dedos me deixou excitada. Quis procurar também um retrato do Presidente Washington Luiz. São imprevistos; à máquina, quando lhe dá um pane, às vezes me surgem. E foi que, não sei se a fitar o bigode espesso, se porque me cortava na folha de papel, quando vi – tinha parado, já não pensava mais no nome do nosso modelo.


Busquei bem a compensatória: Rubem Braga haveria que caber no álbum. Mas a vida é muito pão, muito queijo e muito masca e cospe para álbum ficar dando modelo. Nas fotos se revelou apenas um pária, um padre, um padeiro. Não – é para isso que servem os grandes, glória sem glamour? Não, a mim, me basta ser larga: um canal tem dezoito centímetros, então principia o organismo. Ainda não conheci inteiro o professor, mas sei o tipo. Sei que não passa a noite no conjugado e nem dorme cabulando banho. Rubem Braga foi uma sentença. 

O corretivo? Simples; foi, como foi. Amanhecendo, entrei no primeiro sebo que vi, pedi a revista mais antiga e, já na primeira página, estava lá estampado: Cuquita CarballoNão a conheço, no google existe apenas como imagem. Recortei convicta. Se for para ter modelo, será rumbeira cubana. Só assim que me soo literária: suada, num corpo a corpo, anônima.

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SÍNDROME DE PIRATA (SEGUNDO O PAPAGAIO)


Na bandeirância: relva, selva. Uma fonte secando, um conta-gotas, palpitações. O que fazer quando se nasce com uma natureza ruim? Um composto orgânico, quando os compostos tóxicos, minando por dentro, destroem toda a fauna e flora que habita sua natureza. A minha natureza. Com que fauna? Aquela ave que pousou em meu ombro, depois de alguns dias morta, a dissequei para ver o quão se putrefazia.

Está viva. Horrorizada, a ave foge como pode. Tripas partindo; no chão, tripas virando lagartas que crescem e queimam. Nunca dissequei uma. As aves, só quando vivas no meu ombro sem que eu as perceba. Foi pela assimilação de naturismos que aprendi a falar, e foi de você, lagarta. Com você, que me odeia. Se fossem todas como você, será que dissecaria as aves que foram a ponto de partirem tripas, e será que ainda assim me perdoariam enquanto me odeiam pelo assassínio? Quais as lagartas que também morrem em minha paisagem e em que dia o solo não foi tóxico? 

— Terra.

Será que o sangue pulsando em mim tem sentido ou numa dissecação ele deverá fecundar para fora?

— Cinzas. É em razão da medicina que te declaram morto. Pela medicina, a imolação arde mais que o beijo da lagarta.

Mas para onde drenarão poluição e o que restará de fauna e flora numa natureza declamada extinta? Murcham de vez ou enfim desabrocham. Se notam, é porque as folhas caem em quintal alheio — se alguma ave sobrevoando houver de reparar. Quem me dera alguém lendo a carta sobre meu ecossistema. Aquela fonte não secaria em vão.

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