Não sei se o romance morreu.
Não quero saber.
Tenho raiva de quem sabe.
Nunca cogitamos velório.
Eu? Não. Viu? Obrigado.
Licença? Claro.
Por favor. Pode passar.
. . .
Não sei se o romance morreu.
Não quero saber.
Tenho raiva de quem sabe.
Nunca cogitamos velório.
Eu? Não. Viu? Obrigado.
Licença? Claro.
Por favor. Pode passar.
. . .
Alberto veio me procurar algum tempo depois de eu pedir papel e caneta. Eu queria conversar mas não era possível, pois só joga papo fora quem o tem de sobra. Aqui estão as enfermeiras todas muito ocupadas. Elaine era o nome da que primeiro falou comigo e já não sei quem ela é. Gostaria de ter-lhe dito que tenho uma prima chamada Elaine. E que a sedação foi tão boa que sedado o que sinto é muito bom. Ou, talvez: se na verdade é mais uma impressão, e na verdade o bom vem de depois do apagão estar vivo. Mas uma suave vida apagada na seda... de forma que tantos americanos se viciam em morfina. São efeitos parecidos?, não há a quem possa fazer a pergunta. Peço para conversar com as enfermeiras e pelo meu estado devem pensar que minha vontade de conversar é vã como o sedativo — e? Por isso não importa? Como têm mais o que fazer, pelo menos uma mais gentil atendeu ao meu pedido de papel e caneta. Vejo que a escrita é um arremedo da solidão quando espreita o medo. Mas endereçando-a. A mim? Não sei. Medo de quê? Não sei. Sei que ela potencialmente me revela o que agora só com o torpor nas mãos poderia registrar. E se a escrita revela-me, então a quem? Não sei. Ao menos logo chamarão minha mãe. O tempo suficiente para, de pouco em pouco, me desinteressar do por um instante divino suco de maçã; para deixar de — deixei. Mas o doutor (terá doutorado?) parece que sabe como é, segundo umas das enfermeiras; já o chamaram há tempo e não vem. Seu nome: alguma coisa com L, talvez Loreto. Só faço pensar naquela atriz bonita que não é a Camila Pitanga.
. . .
Nem
uma pedra no caminho
Ausência delas
Nenhum cenário
mais remotamente concebido
como iminência possível
de tropeços empecilhos base para barricadas
Ou atirar pedras porra
Não tem pedra no caminho
Caminho sem pedras
sem caminho
aqui não há nada
. . .
Poema com o qual acho que não concordo
mas que talvez agrade o coração do poeta Régis Bonvicino.
Poema retirado do meu comentário digital
Burro! Estronda como um esturro
O alarido estúpido do seu urro...
. . .
POEMAS TERRIVELMENTE LINGUÍSTICOS
O João perguntou quando a Maria vem;
o João perguntou: a Maria vem quando?
. . .
fortes rimas toantes fracas
mortes corpos mortos
jogados em meio à praia
ritmos breves longos idem
mais curtos versóbrios
por assassínios se imprimem
de cinco a sete facadas
alternadas logo
em redondilhas sublimes
. . .
13.4.23
pelo prazer da língua
pelo saber da língua
pelo sabor que a língua me dá
Ou a outros homens
que beijem e falem como você
sem que eu sequer
tenha que provar para dizer
. . .
Está feito. Os troços coisados
em negócios. Muito despojo.
Tudo destroços. Necrotreco
de sentido, e no som
ainda rima interna
com ossos.
. . .
Então aqui vem se acabar
a Rua Cayowaá.
Então é aqui?
Pra mim você era
mais moça. Pra mim
você: era.
Eu te imaginava mais
pomposa e lembrava também
daquele condomínio
na sua primeira quadra
quase dando no metrô,
onde morava a colega de sala.
De repente me lembro
do endereço: 2046; grande,
de crepúsculo e não de aurora.
Nunca pesei que o sol poderia ter nascido
deste outro lado e de caminho cruzado
só então me encontrar.
Nunca cogitei que não trouxesse
eu o sol,
ou que ele nascesse distante
dos meus olhos. Mas ele
se põe. E antes mesmo ele nasce.
E isto aqui é o antes
que eu não via.
Não acaba aqui a Rua Cayowaá.
Agora eu vejo.
Depois de tudo, enfim,
chega a hora do começo.
. . .
O mundo está decididamente encantado.
É a graça. É fugaz: logo passa.
Agora o mundo de plástico me abraça.*
Miguel Bivar Marquese
Esta ampliação da esfera privada, o encantamento, por assim dizer, de todo um povo, não a torna pública, não constitui uma esfera pública, mas, ao contrário, significa apenas que a esfera pública refluiu quase que inteiramente, de modo que, em toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora precisamente porque é irrelevante.
*E isto também é real embora não agrade ao poeta Régis Bonvicino (nota do epigrafista).
. . .
Aquele dia você tombou
tonta, se apoiava
num não vi ao certo —
fazia escuro. Desde aquela noite
em que você,
depois de se levantar,
caiu de novo,
seis anjos me carregam,
sete demônios me dão de comer,
e meu único anjo da guarda
me sentou na única cadeira
como consolo.
Partimos sapatinho de cristal.
Não bastou.
Queimamos brinco de ouro.
Não passou.
Permaneço hoje sentado,
mas oito espíritos da floresta me conduzem,
nove passos à frente, eles vão,
desbastando as árvores,
cuidando para que eu não veja
o vento abater nenhuma folha;
e nunca outra queda
me lembre de que você bebeu de novo.
Desde então, dez vetustas
me jogam na cara sua ordem de vínculo
e pouco nível de compromisso;
onze bailarinas fazem da minha vida
um circo.
. . .
Ninguém disse a mais fina
A palavra se esconde
Já onde?
é o que a gente não atina
Estou tentando descobrir o ritmo
encadeado do meu pensamento
e ele não existe
tenho descoberto
Mas não penso em prosa
isso é certo
. . .
Uma brincadeira: futebol de botão.
Uma dança: dança de salão.
Um livro que não li: Lamentações,
Daniel, Esdras.
Uma conquista: não as tenho.
Uma derrota: Graças a Deus,
poucas tenho. Não estou morto ainda;
se bem que tampouco tentaram-me
matar; se bem que hoje me sinta atento.
Fui um menino atentado,
pelo que me lembram.
Por proteção,
escolho a Oração de S. Miguel Arcanjo,
entre todas (este nome,
recorde de batismo em 2022,
minha mãe me pôs,
duas décadas atrás; e logo
com tanto Miguel
me vejo comungando de tão mais).
De vários jargões religiosos
caros ao léxico da crítica:
me bastam tais versos. Recuso,
obstante, a pecha confessionais.
Como, se a quem?
Qual frei? Cuja paróquia?
. . .
A luz se fez no caleidoscópio multicolor,
multicordicarnal, em tantas cardinalidades.
Soçobramos. Portanto só sobra a dúvida —
. . .
Vou expô-la. Meu cachorro é tão profundo que leria Montaigne, mas se condensa em centímetros. As coisas são o que são: meu cachorro é de apartamento, diz-se de madame. O meu cachorro é melancólico. Não sei se porque viria da Sibéria e vive assim na Vila Jataí. Assim, seu topônimo indígena e estatuto alienígena: Apso, Lhasa.
. . .
Preciso da porta ranger
inconteste, inconstante.
Tenho amor ao vento.
Não me ranjo os dentes.
Nunca fugi aos medos
no instante, nem um instante.
. . .