QUEM TIRA A PRIMEIRA PEDRA?


Nem

uma pedra no caminho

Ausência delas


Nenhum cenário

mais remotamente concebido

como iminência possível

de tropeços empecilhos base para barricadas

Ou atirar pedras porra

Não tem pedra no caminho


Caminho sem pedras

sem caminho

aqui não há nada

. . .

Poema com o qual acho que não concordo
mas que talvez agrade o coração do poeta Régis Bonvicino.

RESPOSTA CORDIAL AO PINTOR ANTONIO YUDI

Poema retirado do meu comentário digital


Burro! Estronda como um esturro

O alarido estúpido do seu urro...

. . .

LINGUISMOS TERRIVELMENTE POÉTICOS

POEMAS TERRIVELMENTE LINGUÍSTICOS


O João perguntou quando a Maria vem;

o João perguntou: a Maria vem quando?

. . .

São Miguel à frente para me defender;

São Miguel atrás para me proteger;

São Miguel à direita e à esquerda para me acompanhar;

São Miguel acima para me iluminar;

São Miguel abaixo para me sustentar;

É como se eu tivesse

Toda a força de uma prece a me rodear.

. . .

DE TERCEIRO GRAU


fortes rimas toantes fracas

mortes corpos mortos

jogados em meio à praia


ritmos breves longos idem

mais curtos versóbrios

por assassínios se imprimem


de cinco a sete facadas

alternadas logo

em redondilhas sublimes

. . .


Percebi que me iludi com um fato inexistente: o sabor da língua. Ah, isso só se faz a ingrediente. Não há como temperar um frango sem frango. Não sei mais contar histórias, porque você não me trouxe um frango, porque eu nunca criei galinhas.

. . .

em sampaulo

Apreenda depressa a chama arte de realidade.

A MÁRIO DE ANDRADE

13.4.23

pelo prazer da língua

pelo saber da língua

pelo sabor que a língua me dá

Ou a outros homens

que beijem e falem como você

sem que eu sequer

tenha que provar para dizer

. . .

SEGUNDOS LÍRICOS NA VIDA DE UM BILIONÁRIO

 

Está feito. Os troços coisados

em negócios. Muito despojo.

Tudo destroços. Necrotreco

de sentido, e no som

ainda rima interna

com ossos.

. . .

POENTE ANTIGO NO BAR DOS AMIGOS


Então aqui vem se acabar

a Rua Cayowaá.

Então é aqui?

Pra mim você era

mais moça. Pra mim

você: era.

Eu te imaginava mais

pomposa e lembrava também

daquele condomínio

na sua primeira quadra

quase dando no metrô,

onde morava a colega de sala.

De repente me lembro

do endereço: 2046; grande,

de crepúsculo e não de aurora.

Nunca pesei que o sol poderia ter nascido

deste outro lado e de caminho cruzado

só então me encontrar.

Nunca cogitei que não trouxesse

eu o sol,

ou que ele nascesse distante

dos meus olhos. Mas ele

se põe. E antes mesmo ele nasce.

E isto aqui é o antes

que eu não via.

Não acaba aqui a Rua Cayowaá.

Agora eu vejo.

Depois de tudo, enfim,

chega a hora do começo.

. . .

EPÍGRAFE PARA HANNAH ARENDT


O mundo está decididamente encantado.

É a graça. É fugaz: logo passa.

Agora o mundo de plástico me abraça.*

Miguel Bivar Marquese


Esta ampliação da esfera privada, o encantamento, por assim dizer, de todo um povo, não a torna pública, não constitui uma esfera pública, mas, ao contrário, significa apenas que a esfera pública refluiu quase que inteiramente, de modo que, em toda parte, a grandeza cedeu lugar ao encanto; pois embora a esfera pública possa ser grande, não pode ser encantadora precisamente porque é irrelevante.


*E isto também é real embora não agrade ao poeta Régis Bonvicino (nota do epigrafista).

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CINCO FATOS QUE VOCÊ NÃO SONHAVA SOBRE O PESADELO


Aquele dia você tombou

tonta, se apoiava

num não vi ao certo —

fazia escuro. Desde aquela noite

em que você,

depois de se levantar,

caiu de novo,

seis anjos me carregam,

sete demônios me dão de comer,

e meu único anjo da guarda

me sentou na única cadeira

como consolo.

Partimos sapatinho de cristal.

Não bastou.

Queimamos brinco de ouro.

Não passou.

Permaneço hoje sentado,

mas oito espíritos da floresta me conduzem,

nove passos à frente, eles vão,

desbastando as árvores,

cuidando para que eu não veja

o vento abater nenhuma folha;

e nunca outra queda

me lembre de que você bebeu de novo.

Desde então, dez vetustas

me jogam na cara sua ordem de vínculo

e pouco nível de compromisso;

onze bailarinas fazem da minha vida

um circo.

. . .

OUTRO PROFEMA


Tanta gente diz feia palavra

Ninguém disse a mais fina

A palavra se esconde

onde?

é o que a gente não atina


Estou tentando descobrir o ritmo

encadeado do meu pensamento

e ele não existe

tenho descoberto

Mas não penso em prosa

isso é certo

. . .

EPÍSTOLA AO SÉC. XXX

 

Uma brincadeira: futebol de botão.

Uma dança: dança de salão.

Um livro que não li: Lamentações,

Daniel, Esdras.

Uma conquista: não as tenho.

Uma derrota: Graças a Deus,

poucas tenho. Não estou morto ainda;

se bem que tampouco tentaram-me

matar; se bem que hoje me sinta atento.

Fui um menino atentado,

pelo que me lembram.

Por proteção,

escolho a Oração de S. Miguel Arcanjo,

entre todas (este nome,

recorde de batismo em 2022,

minha mãe me pôs,

duas décadas atrás; e logo

com tanto Miguel

me vejo comungando de tão mais).

De vários jargões religiosos

caros ao léxico da crítica:

me bastam tais versos. Recuso,

obstante, a pecha confessionais.

Como, se a quem?

Qual frei? Cuja paróquia?

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DEUS É UM FILTRO?


A luz se fez no caleidoscópio multicolor,

multicordicarnal, em tantas cardinalidades.

Soçobramos. Portanto só sobra a dúvida —

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REAL DIALÉTICA ENTRE UNIVERSAL E PARTICULAR


Vou expô-la. Meu cachorro é tão profundo que leria Montaigne, mas se condensa em centímetros. As coisas são o que são: meu cachorro é de apartamento, diz-se de madame. O meu cachorro é melancólico. Não sei se porque viria da Sibéria e vive assim na Vila Jataí. Assim, seu topônimo indígena e estatuto alienígena: Apso, Lhasa.

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FANTASIOGORIA


Preciso da porta ranger

inconteste, inconstante.

Tenho amor ao vento.

Não me ranjo os dentes.

Nunca fugi aos medos

no instante, nem um instante.

. . .

Algo em mim pulsa por uma reverência, canta

    Carlos, obrigado
    Carlos, muito obrigado...

algo assim em mim continua; eu — já não me assustando mais. E ele — pop. Porque, a mim — que o amei, então descobri a falsidade ideológica da instituição poesia e daí o detestei junto dos defensores da literatura, tão dissimulados —, me fez tornar a amá-lo. E ainda o fez com jeitinho, sabe, essa autoridade anarquista lá do interior das Gerais... Mais ainda porque obriga tudo a acabar, dizendo: acaba, vai acabar, já tá pra. No seu jeito de mostrar que verso não é menos perfomance linguística, e o sublime é ato tão ilocucionário quanto o panfleto, a publicidade. Licença, se falo em tecniquês é porque às vezes se é tecnicolor. Porque a gente não abre mão de tudo não; e eu — que não abro mais de Drummond, que tudo mais foi pro inferno.

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GLORIFICAÇÃO (2022)


No verse is free disse o poeta Eliot

em sua suma autoridade


Some may be

disse o poeta Pássaro do Desejo

e a santa que em nome de

Todas-as-Águas

Quase-Paradas

rebentou os diques do brejo


não mais

Rainha-Vitória gorda-

              mente estendida sobre a face

                                                      do lago


Nunca mais

autoridade pro-

                                      funda

Para sempre

alagado     em      todo     lado

Para sempre: pô-ças


Ilhas                       

                    — para sempre

. . .