De fato a escrita guarda muito em comum com a guerra. Hoje me deito em paz não tenho nada a escrever. E para o dia de amanhã espero estar em festa.
De fato a escrita guarda muito em comum com a guerra. Hoje me deito em paz não tenho nada a escrever. E para o dia de amanhã espero estar em festa.
Não o comentário em seu estado bruto, mas a leitura que eu fiz de sua leitura. Convencer-se de que, só porque acessamos algo por escrito, podemos reproduzi-lo com mais facilidade, é apenas um daqueles muitos sacrilégios que cometemos em nome da escrita: como se uma fala fosse um mero amontoado de palavras, e não, antes, uma ação composta por forças e intenções. Li o que ele me escreveu sobre o que leu mais ou menos assim:
Amar é a cura da loucura porque, se o modo da loucura é o solipsismo, o amor não se realiza sem o exercício de uma linguagem comum. Por isso é a ponte possível, necessariamente, para um eu de si doente.
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Por que não escrever? Afinal preciso me cuidar de muitas formas. Poderia escrever “de alguma forma” mas apenas uma não seria suficiente. Quase escrevi “de todas as formas” mas todas me seria impossível, me causaria ainda mais sofrimento procurar me cuidar totalmente.
Para me cuidar suficientemente então eu escrevo. Eu que cinicamente ataquei a escrita. Ataquei para que não confundam o que a escrita pode vir a produzir com o louvor a ela como quem louva um tanque de guerra. Porque li de perto (sim, eu li) tudo o que destruímos em nome da escrita, e li muita coisa feita para destruir.
E vi muita coisa feita para destruir. Porque vivemos em meio à destruição. É preciso muita força para não ser destruído. Eu percebi isso hoje. Que não posso ser fraco não. Ontem falei para a Clara: minha irmã é meio fraca da cabeça, ela fica vendo reels de influenciador que tem o lobby da indústria do transtorno alimentar por trás e fica querendo ter um corpo irreal. Mas agora eu percebo que minha própria cabeça foi tão raquítica esse tempo todo, porque aceitei todas as ciladas que fizeram para mim. Aceitei a hipocondria, a repressão sexual, a paranoia, a mania, a ansiedade. Aceitei tudo e ainda vestia a sua camisa.
Não posso mais dizer que sou hipocondríaco. Nunca mais. Porque a cada vez que eu o disser terei aceitado o hipocondríaco que fizeram de mim. Terei aceitado algum lobby que sempre há por detrás de alguma coisa, terei sido profundamente fraco da cabeça e do corpo, de que a cabeça é uma parte. E o pior: terei feito isso vestindo a camisa, terei crido que fazia a coisa digna, nobre, bela, certa. Sou hipocondríaco, diria como dizia, buscando louros pela confissão mais honesta.
Mas, se – na mesma conversa com a Clara, eu dizia a ela também sobre como amadurecer e crescer é relativizar a imagem de uma pessoa formada a ponto de enxergar que todos na verdade aprenderam à sua maneira a viver sem enlouquecer, e que ter uma crise de pânico não me fará ficar louco, assim como todos descobrem como conviver com as próprias aflições e angústias –, então também aprenderei a conviver com as doenças.
Escrevo esse texto profundamente perturbado porque acredito que há um cravo no meu olho. Talvez terei de conviver com um cravo no olho. No pior dos cenários, terei de fazer uma cirurgia para extrai-lo ou senão ficarei cego do olho esquerdo. E? Tanta gente cega que é boa do coração. O importante é não adoecer o coração.
“É só do coração dizer não quando a mente tenta nos levar pra casa do sofrer”. O Fran não entende esses versos. Me disse que não gostava dessa dicotomia barata entre mente e coração. Já eu acredito na tremenda força das metáforas consolidadas. “Um dicionário é um cemitério de metáforas”, foi a única frase que gostei da peça média do Gregório Duvivier. Sim. É mesmo. Uma palavra, em seu sentido literal, é uma metáfora muito convencionalizada. A começar pelo próprio fato que o sentido do “sentido literal” é já uma metáfora. Literal quer dizer “ao pé da letra” e as letras não tem pé, ao menos literalmente, quer dizer, ao pé de seu próprio pé.
“É só do coração dizer não quando a mente tenta nos levar pra casa do sofrer”. Meu coração e minha mente vem se profissionalizando a cada vez mais em sua luta, às minhas custas. Minha mente encontra armadilhas cada vez mais perversas para me levar pra casa do sofrer, e meu coração dia a dia aprende técnicas de desarmá-las que são, devo dizer, muito belas. Só tenho a agradecer ao meu coração. Gostaria de acreditar que agora é a ele que minhas mãos correspondem. À minha mente não.
Desejo não esquecer essa verdade. Pois há mais esta armadilha: minha mente se recusa a lembrar das coisas bonitas que meu coração fez para nos salvar. Nos salvar: o coração é tão generoso que busca salvar até a mente, e ela é tão ingrata que prefere autodestruir-se a agradecer ao coração. Assim, esquecendo de tudo o que ele faz, a mente, tirana, espera que seja capaz de triunfar sobre o coração, despossuído. Mas a força mesma do coração vem da sua despossessão. E para que jamais nos demos conta disso nossas mentes fazem ensinar nas escolas que não se pode rimar em ão, para que aceitemos e não corramos o risco de perceber a intimidade profunda entre o coração e a condição subversiva daquilo a que lhe condenaram, a despossessão.
Para sofrer menos, então: se eu seguir carreira acadêmica, que eu o faça em nome do meu coração. Que seja uma questão de bem viver e não algum projeto vil da minha mente, alguma coisa egoísta dela de si para si. Egoísta, narcisista, capitalista, colonialista. Se escola fosse bom mesmo nos ensinariam a não rimar não em ão mas em ista. Ou pelo menos nos ensinariam a banir essas palavras da lista.
Acredito que se eu estudar conforme o meu coração sofrerei menos. Estudar porque assim manda o meu coração. Que nada mais é do que uma metáfora muito consolidada para dizer que eu devo estudar na medida em que isso faça sentido. Não devemos ficar nada surpresos se nos lembrarmos que, na equação clássica, de fato é o sensível, e não o inteligível, o que mora junto ao coração. Uma dicotomia barata, pode ser, mas tudo o que é bom na vida vem de graça.
No entanto, ao fim nos perguntamos: o quanto de mau já não foi feito também em nome do coração? Em nome do sentido e do sensível também não se justificaram quantos crimes das nações? Como no caso da escrita, é claro, só falar em coração não bastará para nos impedir ou redimir de nossa excessiva violência. A medida justa, o tom só quem o dará para mim será o meu próprio coração. A particularidade do corpo, do meu corpo, será a minha salvação. Terei de confiar nele, como agora confio na minha escrita, que, apesar de ser destro, acredito que venha dessa região próxima ao meu ombro esquerdo, em direção a ambas as mãos, e irradiando, e povoando todo o resto.
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