UMA CANÇÃO É UM POEMA QUE SABE O QUE FAZ

 

Se, como disse Saussure,

a poesia é a primeira ciência da linguagem,

a canção é sua mais profunda consciência

– da poesia, da linguagem

e de sua própria ciência –

e de muitas mais consequências

de sua abordagem:

sobre as quais estou muito certo

(so sure)

embora não preste para descrevê-las de modo correto

num texto escrito.

Portanto fechem essa página

– chega disso por hoje –

e me imaginem cantar bonito

. . .

GÊNERO: CARTA DE SUICÍDIO

 

O conceito de "capital cultural" nos obriga a considerar algumas consequências do termo polissêmico "riqueza". Riqueza de quê? Pois bem, vamos agora a apenas uma dessas consequências.

Muito já se disse sobre o princípio aristocrático do deboche aos "novos ricos". E sabe-se bem que o problema do Brasil não é nem jamais será a classe dos novos ricos, dos que passaram a sê-los, mas a classe dos velhos pobres, dos que nunca deixam de sê-los:

"Abro a porta, vejo a fumaça no asfalto
O Sol me cega, eu sigo em frente
Encaro o Sol, deixo meu rastro para trás
O dia corre assim veloz
O dia corre além de nós
E eu vou me desviando das aeronaves
Que aterrissam a todo instante
Morrer já não parece novo, já não assusta
Desço a Rua Augusta a 120 por hora
(...) O Sol nas bancas de revista
E na capa da revista
Sombra, grana e água fresca
Vejo novos ricos
Vejo velhos pobres
(...) As meninas dos Jardins gostam de rap"

No entanto talvez ainda não se tenha dito tanto sobre o princípio aristocrático, em outro sentido todavia análogo, de um possível desprezo aos "novos ricos" na extensão cultural que se dá à ideia de capital: "os novos cultos". Uma questão que já se enfrentava na década de 1940 na Europa Ocidental, escreve Adorno no Fragmento 32, "Os selvagens não são homens melhores", de sua Minima Moralia:

"Entre os estudantes negros de economia política, os siameses em Oxford e, em geral, entre os laboriosos historiadores da arte e os musicólogos de origem pequeno-burguesa, pode encontrar-se a inclinação e a prontidão para associar à apropriação do que estudam, do novo, um enorme respeito pelo estabelecido, pelo vigente, pelo reconhecido. A disposição anímica intransigente é o contrário do estado selvagem, do espírito de neófito ou dos 'espaços não capitalistas'. Pressupõe experiência, memória histórica, nervosismo de pensamento e, acima de tudo, uma substancial dose de tédio. Sempre foi possível observar como aqueles que, com sangue jovem e total candura, se integravam em grupos radicais desertavam, logo que se apercebiam da força da tradição. Há que ter esta dentro de si para a poder odiar. O facto de os esnobes mostrarem um maior sentido pelos movimentos vanguardistas na arte do que os proletários lança também alguma luz sobre a política. Os epígonos e os recém-chegados têm uma angustiante afinidade pelo positivismo, desde os admiradores de Carnap na índia até aos corajosos apologistas dos mestres alemães Matthias Griinewald ou Heinrich Schiitz. Má psicologia seria a que admitisse que aquilo de que se está excluído desperta apenas ódio e ressentimento; suscita também um absorvente e impaciente tipo de amor, e aqueles que não foram arrebanhados pela cultura repressiva facilmente se tornam a sua mais néscia tropa defensiva."

Depois de uma leitura tão indigesta, é a hora de nós nos perguntarmos, em nossos corações, se também nós aceitamos apenas o ódio dos subalternos, que nos devolve a imagem de nossa própria relação com o que foi nos desagradavelmente legado; se, então, não estamos dispostos a aceitar também o amor dos subalternos, um amor de que sentimos não precisar, pois nunca se ama tudo aquilo que não precisamos jamais amar para ter.

O que se chama de capital cultural.

Se nos indagássemos no fundo de nossos corações, descobriríamos que mesmo o nosso ódio à tradição é estéril e não serve de nada. É a mais forte exclusão, é a mais perversa promessa: estabelece-se que, a partir de agora, dele só poderão participar aqueles que sequer possam a vir conhecer o que chamamos "nossa tradição" (como se por direito, mas por privilégio e, sobretudo, absoluta ignorância); pois os que, conhecendo-a, não travarem com ela a mesma relação que travamos nós — aqueles que nunca precisamos conhecê-la, uma vez que dela cremos que surgimos —, esses talvez não irão detestá-la da maneira que a alguns parece adequada, recomendada, correta:

"Os acertos dos privilegiados devem valer menos que as tentativas equivocadas dos despossuídos. Pois o privilégio paga inclusive por isso: acertos."

Não, enquanto classe, a única boa contribuição que seremos capazes de dar ao mundo é a traição ou o suicídio. Não nos termos do que achamos que deve ser uma traição ou um suicídio. Nos termos dos outros, nos termos da exigência de traição ou de suicídio que nos for feita.

O que pode envolver levar de volta todas as chicotadas já dadas:

"Dá neles, Damião!
E devolve o hematoma
Bate mesmo, até o coma
Que essa raiva, passa nunca, não
(...) Dá neles, Damião!
Mesmo que peçam clemência
Faz que é tua essa demência
Faz pesar a consciência do plantão
Dá neles, Damião!
Mira no meio da cara
Dá com pé, com pau, com vara
Bate até virar a cara da nação"

— Nesse caso, estaremos dispostos?

Mas, e o pior, se não só nos for preciso pagar e sofrer, isto é, afetar-se na economia do ódio, se também nos for pedido o que nunca poderíamos ter previsto: amar, nos moldes de um amor "neófito" que, pelo gesto de uma pura distinção, detestamos — também a isso estaremos dispostos?

Abrir mão do nosso "gosto", de um gosto tal que pode se dar ao luxo inclusive do desdém, desprezo ou descaso aos próprios objetos que lhe são inerentes, não: isso seria muito perigoso.

. . .


POEMAS QUE EU JAMAIS SERIA CAPAZ DE COMPOR MAS ESCUTO EM UMA CONVERSA DE TELEFONE NO ÔNIBUS

 

Deixa disso

Ainda mais arma branca

que não tem fiança

Com prejuízo a gente já acorda todo dia

seja de dinheiro, o que for

Não vai querer adiantar a morte de um bezerro

por conta de uma dívida

Te falar uma coisa

já viu algum ladrão aposentado?

Bandido não aposenta

A gente não nasceu pra isso

Você vai e mata o cara

o cara é da facção

alguém vai comprar a briga do cara

Você vai lutar contra um exército?

Deixa quieto

. . .

 

Quais feitos

nos fará

o mês de maio?

Para quais fatos

o mês de maio

nos trará grandes

frutos?

O mês de maio 

sonha com que

feitiços?

E sua luz,

essa imensa

e tamanha luz

que maio recebe

aqui

no hemisfério sul,

nos urde quais

planos,

filhos, filmes

em segredo?

. . .

 

Não sei ser "eu" no WhatsApp. Sou no WhatsApp inevitavelmente uma estilização de "mim". A exterioridade da escrita: estou sempre "me" representando, respondendo como se eu fosse "eu", e isso é muito difícil, porra, não dá jeito, eu não tenho jeito – eu, sem aspas, sem dúvidas não tenho jeito.

Tudo que me resta é a afetação mais artificial possível de uma naturalidade (para que acreditem mesmo que nas mensagens "eu" sou eu) e três pontos que alinho num suspiro reticente (para sair logo, e breve, o quanto antes, de cena)...

E acabou o poema.

. . .

 

Tenho medo de quem não tem medo de ficar maluco,

somos possuídos por nossos próprios significados,

por acaso vocês não percebem?

Somos reféns daquilo que dotamos de sentido, 

mas vocês ficaram loucos

e se dão ao luxo de não ter a paranoia,

quer dizer o auto-monitoramento

que é relegado a fracos,

sitiados e poucos.

. . .