30 de dezembro de 2024
HOJE
Ontem, escrevia
No estado de vigília, a gente não sai da gente, a gente pra sempre mora num não morar na gente. Nada ganha pregnância. Se não durmo profundo, continuo com um resíduo de mim mesmo do qual devo esquecer se quero impressionar-me por alguma outra coisa. Se quero me sentir na Bahia preciso esquecer profundamente meu dia de ontem, de anteontem, e o de antes de antes de ontem, e o de antes ainda – na Bahia, em Sergipe, em São Paulo, em Minas –, preciso dormir fundo. Enquanto não durma fundo, continuarei nunca tendo saído de São Paulo. E eu preciso não me levar junto. Para que eu consiga me sentir verdadeiramente em outro lugar, preciso estar desacompanhado de mim. Mas talvez para isso seja mais preciso vestir muitas roupas que me despojar.
Mas e se de repende eu não quiser mais me sentir verdadeiramente em outro lugar? Se eu quiser me carregar sempre, levar-me a muitos lugares e, não estando neles, ver no que dá?
Talvez seja preciso então não sair mesmo do lugar, em lugares diferentes. O que me parecera tão assustador, que tinha me parecido a maior imobilidade possível. Se nem saindo do lugar para sair do lugar, então como? Pela habitação intensiva desse lugar. O máximo de possibilidades que eu puder extender nesse lugar em que estou. Para viajar mais e melhor: não trocar de mim, mas me levar, a fim de me obrigar a mudar. Apenas então terei mudado, sendo eu mesmo de formas diferentes.
Embora sinta sim algo como uma nostalgia das minhas antigas obsessões. Depois que se foi maníaco nada mais tem o colorido daquela noia. Como um vício. Meu pai tinha me dito: você vai viajando e vai querendo viajar mais e vai voltando mais apático. Até que as próprias viagens se me tornam apáticas.
Ou de repente eu esteja vivendo outra forma de luto. Não da mania, não da obsessão, nem da viagem,
quando me interromperam – estava um pouco afastado, sentado com o caderno no colo e os pés no mar – para brindar algo com uma taça de espumante. Brindei, tomei muito mais, me embriaguei, e agora nada daquilo mais vale.
. . .
RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA
Pela minhas bisavós
que eram analfabetas
pela minha mãe
que foi neta delas
devolvei à música
o que é da música
Tirai da folha a tintura
deixai a canção em paz
deixai o livro em página
deitai fora vossa roupa
e vamos à praia
. . .
O NATAL SÓBRIO DE 2024, UM NATAL SEM ÁLCOOL
Esse ano não gostei do natal. Não foi um dia mau. Pelo contrário: por mesmo em sua plena realização ter permanecido tão mediocre, é que o natal se revelou para mim uma data sem nada de especial. Ou talvez porque eu tenha ganhado dinheiro apenas. Não houve troca de presentes. Ganhei três envelopes com dinheiro e não dei nada a ninguém. Minha prima ganhou três brinquedos, ficou muito contente. Que me perdoe a criança que eu fui, mas aquela felicidade estúpida para mim só tornou isso tudo ainda mais banal. Quem te deu esse presente, foi o Papai Noel? Não, mãe, foi o papai. Ela sabia de tudo. Jamais ser condescendente com qualquer criança. Elas entendem tudo. Hão de entender que essa data que poderia ser bela murchou, tornou-se vã, estúpida, medíocre, mais ainda do que muitos adultos. A maior beleza será enfim aceitar o fato inevitável de se reconhecer, esse de sua triste decadência, quando amadurecermos e já tivermos esquecido a candura que na verdade nunca chegamos a ter sequer em nossa infância. Mesmo porque a lição de Jesus Cristo é estéril. É preciso jamais perdoar. Não perdoar a nada, não nos perdoar pelo que somos, não perdoar o natal pelo que se tornou, não Roberto Carlos, não o amigo secreto da Rede Globo, não a sua reportagem que meus avós acabam de assistir sobre o reisado que o apresenta na forma suave, inofensiva, burra, não perdoar Clarice Lispector pela forma como tratava suas empregadas, por ter escrito cartas à sua irmã sobre "como domesticá-las", não o pop e a definição de pop como "gostar de gostar", não a Selena Gomez cantando All I want from christmas is you no carro daquele entrevistador que entrevista as pessoas no carro e não a todos os outros famosos que também são fãs de outros famosos. Procurar quem ocupa o topo dessa cadeia de poderosos que admiram outros ainda mais poderosos, cortar a sua cabeça – como o rapaz gostoso que matou o CEO e, talvez com mais sorte, fazê-lo logo, e fugir depressa.
. . .
PROCUREM SABER SOBRE O MASSACRE DE CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ
Assassinaram o boi mansinho
Foi a igreja ou a polícia
Não sei disse ele
com aqueles olhos anarquistas
de quem sempre traz
tristes notícias
Disse Oswald Barroso
num vídeo que assisti
O lugar mais lindo do mundo
é o Sítio do Caldeirão
O poeta ressentido Frederico Barbosa disse
A rima é o mais besta entre os recursos poéticos
o slam é pobre em experimentação estética
Disse a professora universitária Viviana Bosi
Ana Cristina César não gostaria de slam
Os islamistas não lêem Drummond
Minha amiga Janaína Rosalen disse
Ana Cristina César é a culpada pela consolidação dos versos com letra minúscula na poesia brasileira
. . .