30 de dezembro de 2024


Após cruzar a ponte sobre o Rio Real, vindo de São Cristovão, antiga cidade de Sergipe d'El Rey, há alguns poucos quilômetros até que se entre na Bahia. Com eles, vivemos em Sergipe sob a mesma baixa pressão do resto do litoral nordestino. Não me parece um fenômeno tradicionalmente atmosférico. Segundo a ciência atmosférica tradicional, perto do mar é onde se encontram as maiores condições de pressão. No entanto, do Rio Real para cima, em todo o litoral do que sempre se chamou de Nordeste, isto é, excluída a Bahia, tudo está como sob o efeito de uma leve descompressão. Na Bahia não. Assim que se cruza a fonteira tudo é imediatamente mais denso. Não adianta dizerem que minha escrita é mistificadora e artificial. Não me ofendo. Mistificadora e artifical é a própria Bahia que minha escrita apenas imita, e a Bahia tampouco deveria pela minha escrita se sentir ofendida.
Estando já pela terceira vez aqui, tendo conhecido Salvador, Santo Amaro, Cachoeira, boa parte do litoral norte e tendo voltado um pouco já para sair — para ir ao Ceará –, desta vez, a Bahia com B maiúsculo me importa menos. Pode ser que ao fim tudo isso tenha sido uma função do meu jeito de entrar aqui desta vez, por de fininho não ter surpreendido a Bahia de forma que ela pudesse se armar para me receber, eu, esse bicho noturno que invade a casa e fareja o seu odor estonteante, pesado. Na minha caça esta é uma preparação sutil, algo que talvez não seja, mas de qualquer forma serve agora para me ensinar que o que eu buscava na viagem pode não se revelar para mim, e que assim eu tenho que procurar ativamente por outra coisa. Ou, se não outra coisa, uma outra forma de relação. Pois e se nem as coisas nem as relações estivessem dadas? Teremos que inventá-las.
Eu sequer sei se existe uma bahia com b minúsculo. É provável que sim e eu jamais venha a acessá-la, ainda que assim que pela primeira vez em que eu tenha posto o pé no aeroporto de Salvador, o Chico tenha me avisado: começa a ditadura da imanência. "Assim é" ou "É a Bahêa". Curioso que o pós-modernismo tenha me convencido que Transcendência se escreve com T maiúsculo e se deve odiá-la e imanência se escreve com i minúsculo e se deve amá-la, e nunca o contrário.
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HOJE

 

Ontem, escrevia

No estado de vigília, a gente não sai da gente, a gente pra sempre mora num não morar na gente. Nada ganha pregnância. Se não durmo profundo, continuo com um resíduo de mim mesmo do qual devo esquecer se quero impressionar-me por alguma outra coisa. Se quero me sentir na Bahia preciso esquecer profundamente meu dia de ontem, de anteontem, e o de antes de antes de ontem, e o de antes ainda – na Bahia, em Sergipe, em São Paulo, em Minas –, preciso dormir fundo. Enquanto não durma fundo, continuarei nunca tendo saído de São Paulo. E eu preciso não me levar junto. Para que eu consiga me sentir verdadeiramente em outro lugar, preciso estar desacompanhado de mim. Mas talvez para isso seja mais preciso vestir muitas roupas que me despojar.

Mas e se de repende eu não quiser mais me sentir verdadeiramente em outro lugar? Se eu quiser me carregar sempre, levar-me a muitos lugares e, não estando neles, ver no que dá?

Talvez seja preciso então não sair mesmo do lugar, em lugares diferentes. O que me parecera tão assustador, que tinha me parecido a maior imobilidade possível. Se nem saindo do lugar para sair do lugar, então como? Pela habitação intensiva desse lugar. O máximo de possibilidades que eu puder extender nesse lugar em que estou. Para viajar mais e melhor: não trocar de mim, mas me levar, a fim de me obrigar a mudar. Apenas então terei mudado, sendo eu mesmo de formas diferentes.

Embora sinta sim algo como uma nostalgia das minhas antigas obsessões. Depois que se foi maníaco nada mais tem o colorido daquela noia. Como um vício. Meu pai tinha me dito: você vai viajando e vai querendo viajar mais e vai voltando mais apático. Até que as próprias viagens se me tornam apáticas.

Ou de repente eu esteja vivendo outra forma de luto. Não da mania, não da obsessão, nem da viagem,

quando me interromperam – estava um pouco afastado, sentado com o caderno no colo e os pés no mar – para brindar algo com uma taça de espumante. Brindei, tomei muito mais, me embriaguei, e agora nada daquilo mais vale.

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RELATÓRIO FINAL DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA


Pela minhas bisavós

que eram analfabetas

pela minha mãe

que foi neta delas

devolvei à música

o que é da música


Tirai da folha a tintura

deixai a canção em paz

deixai o livro em página

deitai fora vossa roupa

e vamos à praia

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O NATAL SÓBRIO DE 2024, UM NATAL SEM ÁLCOOL

 

Esse ano não gostei do natal. Não foi um dia mau. Pelo contrário: por mesmo em sua plena realização ter permanecido tão mediocre, é que o natal se revelou para mim uma data sem nada de especial. Ou talvez porque eu tenha ganhado dinheiro apenas. Não houve troca de presentes. Ganhei três envelopes com dinheiro e não dei nada a ninguém. Minha prima ganhou três brinquedos, ficou muito contente. Que me perdoe a criança que eu fui, mas aquela felicidade estúpida para mim só tornou isso tudo ainda mais banal. Quem te deu esse presente, foi o Papai Noel? Não, mãe, foi o papai. Ela sabia de tudo. Jamais ser condescendente com qualquer criança. Elas entendem tudo. Hão de entender que essa data que poderia ser bela murchou, tornou-se vã, estúpida, medíocre, mais ainda do que muitos adultos. A maior beleza será enfim aceitar o fato inevitável de se reconhecer, esse de sua triste decadência, quando amadurecermos e já tivermos esquecido a candura que na verdade nunca chegamos a ter sequer em nossa infância. Mesmo porque a lição de Jesus Cristo é estéril. É preciso jamais perdoar. Não perdoar a nada, não nos perdoar pelo que somos, não perdoar o natal pelo que se tornou, não Roberto Carlos, não o amigo secreto da Rede Globo, não a sua reportagem que meus avós acabam de assistir sobre o reisado que o apresenta na forma suave, inofensiva, burra, não perdoar Clarice Lispector pela forma como tratava suas empregadas, por ter escrito cartas à sua irmã sobre "como domesticá-las", não o pop e a definição de pop como "gostar de gostar", não a Selena Gomez cantando All I want from christmas is you no carro daquele entrevistador que entrevista as pessoas no carro e não a todos os outros famosos que também são fãs de outros famosos. Procurar quem ocupa o topo dessa cadeia de poderosos que admiram outros ainda mais poderosos, cortar a sua cabeça – como o rapaz gostoso que matou o CEO e, talvez com mais sorte, fazê-lo logo, e fugir depressa.

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PROCUREM SABER SOBRE O MASSACRE DE CALDEIRÃO DA SANTA CRUZ


Assassinaram o boi mansinho

Foi a igreja ou a polícia

Não sei disse ele

com aqueles olhos anarquistas

de quem sempre traz

tristes notícias

Disse Oswald Barroso

num vídeo que assisti

O lugar mais lindo do mundo

é o Sítio do Caldeirão


O poeta ressentido Frederico Barbosa disse

A rima é o mais besta entre os recursos poéticos

o slam é pobre em experimentação estética

Disse a professora universitária Viviana Bosi

Ana Cristina César não gostaria de slam

Os islamistas não lêem Drummond

Minha amiga Janaína Rosalen disse

Ana Cristina César é a culpada pela consolidação dos versos com letra minúscula na poesia brasileira

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