CONFISSÃO (2022)


Eu vou falar a verdade. A vida, que me deixem cá com a minha — não preciso traduzi-la, vai indo bem, obrigado. A confissão é de outra ordem. Eu falo aos meus colegas; e se falo aqui aos meus leitores peço que me leiam esses colegas, um tipo específico de poeta que se revolta e diz que isso que faço não é poema não é bem assim e assim é a vida, assim ele vive a vida e lá aos outros apenas a exibe disruptiva impressa na página, contra as belas artes e também contra a própria poesia, diz que faz outra coisa, sei lá não sei, alquimia. Sabem lá não sabem, esses daí, que quando se joga um jogo não se furta às regras quem rouba ou vira tabuleiro. Um War supõe a trapaça, a dissimulação dum irmão mais velho, para operar; um War pressupõe a histeria, o descontrole do mais novo, para se consumar. A war se impõe como lógica desde que admitida a entrada de sua caixa na sala de se estar. Tal qual para o eu dizer qualquer coisa no seu idioleto eu-de-lira há que já estar admitida a lira. Eu disse pro Picchetti no ônibus lotado: não se trata de exceção, o estado é de exceção. Ele disse que ah Miguelzinho então anda lendo Agamben. Não, seu animal, estou lendo o mundo. E aqui o tecendo por uma forma de escrita. Aproveito para contar uma história que pouco tem que me ver comigo, com que não me identifico, e que não me reflete. E vou pô-la em meio a branco de página para que de-lirem:


Doze toneladas de chuchu

numa caminhonete de quinta

descendo a Serra de Estrela

a Ponte do Pontal

numa noite meio absurda

As doze toneladas divididas em múltiplas partes

contêineres a fora

Algumas estão na China


O todo

O pau duro

Umas dívidas

Isso embriaga o motorista


O motorista para

dá um tiro pro nada

Compensar as aporias


Nada coisa nenhuma

Tinha eu aqui, viu

Me acertou


Desculpa, moça, não vi


E morreu

. . .

RUGIDO DAS FERAS


1.
Pensem na dança dos faróis, peço que pensem na dança sutíl dos sinais de trânsito. Porque nesse instante os faróis do mundo todo, os que não estão quebrados, os faróis funcionais do mundo todo, se não vermelhos ou amarelos, são verdes, oscilando, uns e outros, para os seus contrários; e, porque, num próximo instante, os sinais funcionais do mundo todo se alternarão, caso já não tiverem-se alternado, para uma das três cores. Pensem que, pelo eclipse visto, o padrão iluminado, uma música silente, os faróis funcionais do mundo todo estão a nos codificar: só a cultura contra a natureza dançaria assim aleijada de concerto.


2.
Agora vou-lhes mostrar algo que vocês conhecem do jeito que conhecem: pombo. Ave é meio dinossauro, meio réptil. Cobra vocês já conhecem. Toma cuidado com cobra. Com pombo não toma cuidado: o pombo que toma cuidado com a gente. Perdeu as presas de cobra e ficou com um bico; as patas excelentes nadadoras do jacaré viraram patinhas de pombo duas e duas as asas; com jacaré toma cuidado. O pombo mutante foge assustado, senão pombo atropelado. Ai que tristeza, um caiu no lago, ai, pombinho devorado — dizem que pombo é meio rato.


3.
Daí os advirto. Um dia escrevi: uma harmonia guarda até o saber que a encerra. Guarda a busca pelo saber, seria de mim mais sensível ter escrito. Um harmônico sabe mais que ninguém que, se vai acabar, precisa acabar sem nem se ver. Como dividindo-se infinitamente por dois, dois, a capacidade dum reservatório que nunca chega a zero; que vai, na verdade, multiplicando-se vista em cada unidade cada vez menor; como isso, mas sem unidade — por enredamento contínuo, tão indiscreto quanto sentido sem alarde: uma frequência; acho que alguém harmônico se encerra como uma frequência...
. . .

SUCESSÃO


Tem raiva Chiquita?

que no séc. XXX não vai ter quem decifre?

hermetismo e filosofia?

escritos no nosso próprio cuneiforme?


Vc morre de raiva

Eu entoo minha cantilena


Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê

Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê


Ninguém me vai ler

Ninguém me vai ler

Nem ninguém me lê

Ninguém me lê


Chiquitita no apocalipse

é doce morrer de alegria

. . .